Fernando Sabino - entrevistado por Clarice Lispector.
“Gostaria de morrer em nome de alguma coisa, mas não creio
que mereça tanto.”
Esta entrevista foi feita antes de Fernando Sabino declarar
que a literatura morreu.
Clarice Lispector – Fernando, por que é que você escreve? Eu
não sei por que eu escrevo, de modo que o que você disser talvez sirva para
mim.
Fernando Sabino – Há muito tempo que não escrevo. A última
vez foi ali por volta de 1956, 1957. Escrevia por necessidade de me exprimir.
Desde então tenho me utilizado da palavra escrita como atividade profissional,
por necessidade de ganhar a vida. Mas não chamo a isso de escrever, como ato de
criação artística.
Clarice Lispector – Como é que começa em você a criação, por
uma palavra, uma ideia? É sempre deliberado o seu ato criador? Ou você de
repente se vê escrevendo? Comigo é uma mistura. É claro que tenho o ato
deliberador, mas precedido por uma coisa qualquer que não é de modo algum
deliberada.
Fernando Sabino – A criação nunca começava por uma palavra
ou por uma ideia. Era uma espécie de sentimento em mim que partia em busca
dessa palavra ou dessa ideia. Qualquer palavra, qualquer ideia. Hoje o
sentimento ainda existe, mas tem-se dispensado de se exprimir através de
palavras ou ideias – de certa maneira me contento com o próprio sentimento, que
procura fora de mim alguma forma de expressão já existente com que se
identificar. A música, por exemplo – especialmente a de Thelonious Monk.
Clarice Lispector – Há quanto tempo você escreve crônicas?
Falta-lhe assunto às vezes? A mim, no Jornal do Brasil, por enquanto ainda não.
Fernando Sabino – Escrevo crônica desde 1947. Sempre falta
assunto – é penoso ter de inventar. Procuro suprir o jornal ou a revista que me
pagaria com a matéria escrita que corresponda ao que esperam de mim, ou seja,
agradar o leitor. Aceito alegremente a tarefa, como um móvel.
Clarice Lispector – Que é que você acha do protesto dos
jovens no mundo inteiro? Que estão eles querendo, na sua opinião?
Fernando Sabino – Na minha opinião estão querendo o mesmo
que eu queria quando era jovem – e continuo querendo: repudiar um mundo errado
que os mais velhos lhes querem deixar como herança. Estão querendo acertá-lo e
não sabem como – mas nós muito menos.
Clarice Lispector – Que é que você acha de Marcuse?
Fernando Sabino – Só li de Marcuse algumas páginas da
tradução de um livro seu, o suficiente para
ver que ele parece ignorar, na proposição de suas ideias com
relação ao mundo de hoje, um dado elementar: o de que o mundo de hoje tem muito
mais gente que o mundo do princípio do século. E quanto a isso, ele não
apresenta nenhuma outra solução. Nem mesmo a pílula.
Clarice Lispector – Por que você, Fernando, com o grande
talento que tem, só escreveu um romance? Teve tanto sucesso que isso deveria
incentivar você a produzir mais. Ou o sucesso atrapalhou você? A mim quase que
faz mal: encarei o sucesso como uma invasão.
Fernando Sabino – O sucesso sempre atrapalha: neutraliza a
nossa necessidade de se afirmar. No meu caso, entretanto, não foi o sucesso do
meu romance que me atrapalhou, mas a necessidade, a que não soube resistir, de
fazer da palavra escrita um ofício do qual tiro o meu sustento. Deixando de
escrever, e indo buscar de dentro do mais obscuro anonimato um meio de
expressão, é possível até que eu começasse realmente a escrever. Não desisti:
lhe asseguro que ainda pretendo começar.
Clarice Lispector – Fernando, qual o seu processo de
trabalho, você se inspira como? Ou se trata de uma disciplina?
Fernando Sabino – Há muito tempo que não me dou a esse luxo:
o de inspirar-me. Contar com algum tema, alguma solicitação, algum estímulo que
signifique uma verdadeira inspiração. E a verdadeira inspiração é aquela que
nos impele a escrever sobre o que não sabemos, justamente para ficar sabendo.
Clarice Lispector – Conte-me um pouco sobre a Editora Sabiá.
Fernando Sabino – A Editora Sabiá tem grandes planos para
este ano. Vamos prosseguir na nossa série de antologias poéticas bilíngues,
iniciada com Pablo Neruda, publicando uma de Garcia Lorca. E entre as
nacionais, será lançada em breve a de Jorge de Lima. Vamos iniciar também uma
série de traduções de grandes romances modernos, o primeiro dos quais será Cem
anos de solidão, de Gabriel García Márquez – um verdadeiro monumento da
literatura moderna, best-seller internacional, considerado o livro mais
importante da língua espanhola desde Don Quixote. Além disso, Rubem Braga e eu
não perderemos de vista o objetivo pessoal que nos levou a fundar a Editora
Sabiá: o de publicar nossos próprios livros em melhores condições e, por
extensão, os dos nossos amigos.
Clarice Lispector – Em que jovem de hoje você tem esperança
como futuro grande escritor?
Fernando Sabino – Não tenho acompanhado como devia a
atividade de nossos jovens escritores – passei algum tempo fora do Brasil e
ainda não retomei o contato como gostaria. Mas sei que há diversos jovens
escrevendo o que há de melhor por esse Brasil. Os de Minas, por exemplo,
ocasionalmente me têm dado prova disso, através do excelente suplemento
literário do Minas Gerais, dirigido por Murilo Rubião. Já realizados como
escritores da nova geração, eu poderia citar, entre outros, Oswaldo França
Júnior e José J. Veiga, que me parecem admiráveis. Mas no Brasil, mal um
escritor entrou na casa dos trinta, já é considerado velho...
Clarice Lispector – Qual foi, Fernando, a sua maior decepção
na vida?
Fernando Sabino – Eu poderia responder repetindo Léon Bloy:
a de não ter sido um santo. Mas modestamente, entretanto, prefiro dizer que foi
a de não me ter ainda realizado como romancista.
Clarice Lispector – Quando é que você se alegra?
Fernando Sabino – Sou sempre alegre – daquela alegria
interior dos fronteiriços da debilidade mental e que, portanto, têm ainda uma
oportunidade de salvação.
Clarice Lispector – O que é que você desejaria para o
Brasil?
Fernando Sabino – Desejaria que o Brasil conseguisse
realizar nada menos que o grande sonho da humanidade: o de atender à
necessidade de justiça social para todos sem prejuízo dos direitos fundamentais
de cada um. Uma utopia, que no entanto deve ser o mínimo de ideal a ser
sustentado por um homem digno desse nome.
Clarice Lispector – Como é que você resumiria o conteúdo da
palavra amor?
Fernando Sabino – Amor é dádiva, renúncia de si mesmo na
aceitação do outro. Amar o próximo como a si mesmo e a Deus sobre todas as
coisas.
Clarice Lispector – Quais são os seus projetos como
romancista?
Fernando Sabino – Não sei. Só vou ficar sabendo depois que
escrever um novo romance. É preciso que eu me convença de que um romance não é
mais do que um romance. Tenho de esquecer o pouco que aprendi e sair tateando
às cegas até encontrar o botão de luz.
Clarice Lispector – Você acha que a nossa geração falhou? Eu
acho que sim. Acho que nos faltou dar o corajoso passo no escuro. Nós não
tínhamos desculpa, porque tínhamos talento e vocação.
Fernando Sabino – Não sei se nossa geração falhou. Nunca me
senti, como escritor, como parte de uma geração. (Nem eu, pensei.) Sempre me
senti sozinho e este talvez tenha sido o meu erro. Quis aprender sozinho e
perdi a inocência. O artista é um inocente. Era preciso reaprender a olhar tudo
como se fosse pela primeira vez. Eu olhei como se fosse a última. Em tempo: o
romance que não consegui escrever se chamaria O salto no escuro. Estou
dispensado até deste título, pois já saiu outro com o mesmo nome.
Clarice Lispector – Fernando, você tem medo antes e durante
o ato criador? Eu tenho: acho-o grande demais para mim. E cada novo livro meu é
tão hesitante e assustado como um primeiro livro. Talvez isso aconteça com
você, e seja o que está atrapalhando a formação de seu novo romance. Estou
ficando impaciente à espera de um romance seu.
Fernando Sabino – O que atrapalha a criação de um novo
romance é a presunção de que somos capazes de criar. Diante da grandiosidade da
tarefa, descubro que não sou coisa nenhuma. Era preciso partir da consciência
de minha própria insignificância, e reconhecer com humildade que a tarefa nem
grandiosa é, mas apenas um ato de louvor a Deus na medida das minhas forças.
Clarice Lispector – Você é profundamente católico ou apenas
superficialmente?
Fernando Sabino – O catolicismo é uma herança de minha formação
familiar que, graças a Deus, não abandonei. Deus não abandona aos que não o
abandonam. Mas isso é assunto para conversa só entre nós dois.
Clarice Lispector – Qual o seu santo preferido?
Fernando Sabino – Não tenho preferência. Acho os santos uns
chatos, pela inveja que me despertam, me fazendo ainda mais pecador.
Clarice Lispector – Você, que morou na Inglaterra como adido
cultural nosso, notou lá algum movimento novo na literatura? Eu acho a
literatura do mundo muito parada. Não há quem me satisfaça numa leitura. E
você?
Fernando Sabino – Atualmente eu me interesso mais pelo
depoimento pessoal, pelo documentário jornalístico – que talvez sejam novas
formas de literatura.
Clarice Lispector – Como é que você encara o problema da
morte?
Fernando Sabino – Deixar este mundo não me faz mais alegre,
porque a vida é boa. Mas a morte é o eterno repouso. E eu tenho muita vontade
de repousar eternamente. E muita curiosidade. Espero que não doa muito.
Gostaria de morrer em nome de alguma coisa. Morrer deliberadamente, e não como
alguém que depois do jantar espera que o garçom lhe traga a conta e fica
pensando na gorjeta. Fazer da minha morte a justificação da minha vida. Mas não
creio que mereça tanto.
FERNANDO SABINO – cronista e romancista, o autor de O
encontro marcado e O homem nu foi uma presença marcante na vida literária de
Clarice Lispector atuando como uma espécie de consultor na publicação de seus
livros. Foi seu editor nas editoras do Autor e Sabiá. Manteve uma extensa
correspondência com Clarice quando esta residiu no exterior, publicada em
Cartas perto do coração.
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Fonte:
- LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de
Janeiro: Rocco, 2007.
Texto e imagens reproduzidos do site: elfikurten.com.br
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