Carlos Drummond de Andrade (1962).
Drummond na sede do extinto Ministério da
Educação e Saúde, no Rio, onde era chefe de
gabinete do ministro Gustavo Capanema, em 1942.
Carlos Drummond de Andrade, na casa da rua
Joaquim Nabuco, no Rio de Janeiro (1951).
O poeta no escritório do seu apartamento
da rua Conselheiro Lafayette.
Drummond, Rio de Janeiro (1972)
Foto: Arquivo AE.
Publicado originalmente no site Elfikurten, em Julho de 2012.
Carlos Drummond de Andrade - entrevista inédita: erotismo -
poesia e psicanálise.
Erotismo, poesia e psicanálise em entrevista inédita de
Drummond.
O poeta Carlos Drummond de Andrade concedeu esta entrevista
à pesquisadora Maria Lúcia do Pazo no dia 16 de junho de 1984. Na ocasião,
Maria Lúcia estudava o erotismo na poesia de Drummond para uma tese de
doutorado em Comunicação, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, defendida
em 1992.
O trabalho nunca foi publicado, mas a pesquisadora doou uma
cópia para a Biblioteca Nacional. Esta entrevista, que é parte integrante da
tese, permaneceu inédita desde então, arquivada na divisão de Manuscritos da
biblioteca. Maria Lúcia tem hoje 80 anos e mora em Botafogo, zona sul do Rio.
*****
Carlos, em "Toada de amor", no verso "amor
cachorro bandido trem" esse "trem" é linguajar mineiro para
"coisa" ou é trem mesmo, com suas implicações de velocidade,
possibilidade de descarrilar, bilhete de ida e volta, como no amor?
"Trem", na linguagem mineira coloquial,
significava muita coisa. Em primeiro lugar significava mesmo "coisa",
indiscriminadamente. Depois significava uma forma depreciativa, e é mais ou
menos nessa acepção que eu chamo o amor de cachorro, bandido e trem, como
ofensa grave. Se eu não tivesse eliminado até as vírgulas, esse verso exigiria
mais ênfase na leitura. Não quis dar essa entonação. Limitei-me a enumerar as
palavras. Mas "trem" era tudo -- por exemplo, uma coisa que não era
fácil de definir é um "trem", uma "coisa", um
"troço" -- "trem" era, portanto, sinônimo de
"troço", que veio depois.
Como a interpretação da poesia é muito lata -- a poesia
publicada já não pertence exclusivamente ao autor e sim a uma sociedade, a um
condomínio entre o autor e o leitor ou leitores -- a interpretação pode ser
dada no sentido mais extenso e sugerir, como sugeriu a você, a imagem do trem
de ferro, que pode ir pelos trilhos calmamente e pode também descarrilar e produzir
os maiores desastres.
Nesse sentido, o amor pode ser considerado trem de ferro,
como um itinerário, uma viagem muito atormentada.
No mesmo poema, "Toada de Amor", os dois últimos
versos: "Mariquita, dá cá o pito,/ No teu pito está o infinito". Constituem-se
numa forma, digamos, coloquial do último verso do poema erótico inédito
"Mimosa Boca Errante", que diz: "Já sei a eternidade: é puro
orgasmo"?
Cotejada com a palavra "eternidade", realmente
apresenta certa similitude. No caso do poema "Mariquita dá cá o pito"
-- me recordo muito bem disso -- é mera alusão a um conto de Monteiro Lobato em
que ele narra a estória de um vigário do interior muito relaxado, que andava de
chinelos, fumava cachimbo, em suma, tinha uma liberdade muito grande de viver
na casa dele, quando chega o bispo para uma visita paroquial. Ele então arruma
a casa e prepara-se para receber o visitante com toda a cerimônia. A certa
altura, o bispo vira-se para ele e pede um cigarro ou um pedaço de fumo de
rolo, uma coisa assim. Ele fica satisfeito, assim, e chama a comadre, que
estava nos fundos da casa, e diz: dá cá o pito, quer dizer, aquela expressão
que ele não se permitiria usar diante de uma autoridade eclesiástica, ficou
sendo familiar porque a pessoa autorizava isso.
A ideia que eu tive em mente foi isso, repetir -
"Mariquita dá cá o pito" - e acrescentar, já agora como anotação
minha sugerindo que o pito era da maior importância, era o infinito, quer
dizer, o fumo, o prazer do fumo, do cigarro ou do cachimbo, cria uma espécie de
sonho que pode ser considerado uma forma de infinito.
Esse poema "Mimosa boca errante" faz parte da
coleção de poemas eróticos intitulada "O Amor Natural". Você poderia
dizer alguma coisa sobre a sua intenção de não publicá-los no momento e a
permissão que me deu, tão gentilmente, para que pudessem ser abordados em minha
tese de doutorado sobre o erotismo na poesia de Carlos Drummond de Andrade?
Bem, a autorização e mesmo a sugestão que fiz de lhe mostrar
esses poemas para serem aproveitados na sua tese, a meu ver, é uma coisa óbvia
porque se o objeto da tese é exatamente o erotismo na minha poesia, não havia
nada mais representativo do que esse volume inédito porque ele trata
exclusivamente desse tema em suas muitas variações. Já na minha obra completa,
publicada, o erotismo aparece aqui e ali de uma maneira mais ou menos intensa
ou declarada mas não tem esse sentido assim de tema único que "O Amor
Natural" possui.
Não quis publicar até agora e hesito ainda em publicar -- ou
antes, resolvi não publicar -- pela circunstância de que o mundo foi invadido
por uma onda de erotismo, logo depois convertida em pornografia, se é que a
onda de pornografia não veio antes.
O fato é que hoje não se distingue mais o erotismo
propriamente dito e a pornografia, que é uma deturpação da noção pura de
erotismo. Se eu publicasse agora o livro iria enfrentar, por assim dizer, um
elenco bastante numeroso de livros em que a poesia chamada erótica não é mais
do que poesia pornográfica e às vezes nem isso, porque é uma poesia mal feita,
sem nenhuma noção poética.
Não quis, no momento em que há maior abertura, publicar esse
livro porque não queria ser confundido com outros que exploram esses temas de
maneira que eu considero de mau gosto, inferior.
Já me advertiram que a demora em publicar vai importar
talvez num futuro próximo, em que meus poemas já não ofereçam nenhuma curiosidade
porque o tema já estará tão batido, já se esgotou tanto essa série de assuntos
e a educação sexual de uma forma errada ou certa se generalizou de tal modo --
na escola, no rádio, na televisão e na casa de família - que o meu livro de
poemas correrá o risco de constituir-se em livro de classe para jardim de
infância...
Carlos, em seu poema "Tarde de Maio" referindo-se
ao amor, você diz:
"...há tanto lavou a memória
Das impurezas de barro e folha em que repousava"
Esse barro e essa folha seriam alusões, respectivamente, ao
barro do qual teria sido feito Adão e à folha de parreira que, dizem, serviu
para encobrir o sexo de Eva?
Bem, admito essa interpretação porque, como disse, o texto
literário, principalmente o texto poético, é oferecido a diferentes pessoas com
sensibilidades e culturas distintas, que podem aproximá-lo de outras ideias ou
de outras vivências que tenham tido. Neste caso é perfeitamente razoável
comparar este barro e folha do texto àqueles que você citou.
Agora, tanto quanto eu posso me lembrar -- 20 ou 30 anos
depois, os autores não se dão conta, não se lembram das circunstâncias em que
os versos foram feitos. Às vezes é uma motivação imediata, direta; às vezes é
uma sugestão que ocorre como que fantasiosamente e que desperta o poema.
Quer me parecer, tanto quanto posso me lembrar ou esquecer,
que aí eu me referia realmente a certas circunstâncias em que a natureza se
apresenta na sua forma mais simples: uma estrada e, como eu sou uma pessoa do
interior -- meu pai era fazendeiro -- guardo na lembrança as estradas barrentas
por onde a gente viajava a cavalo até chegar à cidade onde havia a estrada de
ferro, era o caminho do colégio.
A imagem de barro, de folhas caídas das árvores, essas duas
circunstâncias estão ligadas na minha memória sentimental e existencial a
acidentes da infância e me parece que teria cabimento no caso, associar as duas
imagens imediatas à idéia do amor, que evolui entre circunstâncias muito
pobres, às vezes num meio hostil, em ambiente humilde ou que não ofereça nenhum
aspecto mais agradável.
Donde o barro e a folha devem ser entendidos, a meu ver,
como intenção do autor, no sentido literal. Mas pela força que eu disse a você
que o poema adquire sendo lido, interpretado, digerido, deglutido pelo leitor,
e também porque muitas vezes a intenção do poeta é subliminar, ele não percebe,
no momento em que está criando, que na verdade obedeça a umas tantas
reminiscências, umas tantas visões da vida, e essa aproximação só pode ser
detectada pelo leitor.
Acho que a interpretação pode ser aceita.
A Igreja Católica teve que se decidir a justificar a
sexualidade para permitir a reprodução, mas todos nós sabemos das restrições
que o cristianismo impôs ao sexo, associando-o com o pecado. Como você vê
então, que forçosamente tenha havido incesto na origem do mundo porquanto, Adão
e Eva, ou foram irmãos ou foram pai e filha ou ainda mãe e filho, tal como na
mitologia universal que é pecaminosa, pelo menos para a Igreja Católica?
Confesso a você que nunca me havia ocorrido essa ideia de
que Adão foi incestuoso, mas é realmente curiosa e pode ser sustentada.
O problema do incesto é, a meu ver, cultural. Haverá países
ou civilizações em que o incesto era permitido porque não havia a noção de
família que nós cultivamos, e que é, por assim dizer, básica na formação da
sociedade ocidental. Mesmo nesta, segundo li -- não me recordo onde -- a França
é um país onde não há penalidades para o incesto. Não é considerado crime. Só é
criminoso, só é passível de penalidade, a pessoa que faz provocação sexual a
parentes. Mesmo assim, se esses parentes tiverem, parece, mais de quatorze
anos, quer dizer, quando eles já são núbeis, já são adultos, então podem
resistir muito bem à provocação.
Há casos de dispensa de vínculo para autorização de
casamento de cunhado e cunhada, de tio e sobrinha. O casamento de tio e
sobrinha existiu no Brasil até, creio, a Proclamação da República.
Na minha família há numerosos casos de tios casados com
sobrinhas, por uma razão muito simples -- o casamento tinha de ser feito dentro
da mesma família -- o clã era poderoso, não se admitia a intromissão de
elementos estranhos, porque quebravam a tradição da família e principalmente
porque entravam no uso e gozo da fortuna que era um bem coletivo da família.
O incesto é muito relativo. Parece que em povos primitivos
não há essa noção e ele é permitido. Realmente a Igreja fez disso um cavalo de
batalha, como faz de muitas outras coisas. Ainda hoje, para meu pasmo, li nos
jornais que o Papa considera, como direi, não digo criminoso, mas considera
desaconselhável e reprova a relação sexual entre marido e mulher, que não seja
destinada à procriação. Então a liberdade, os prazeres que o casal possa
usufruir, ele simplesmente os condena porque são prazeres gratuitos.
Carlos, o escorpião do poema "Signo" é o desejo,
mas o escorpião do poema "Confissão" é o pecado. Durante muito tempo
associou-se sexo e pecado, hoje, não mais. Por que nos culpamos tanto por
termos outrora feito dele um pecado? O excessivo discurso sobre sexo de nossos
dias não será um erro para corrigir outro?
Sem dúvida, porque, sobretudo, é um discurso muito confuso,
muito enrolado. Com relação ao escorpião, devo dizer a você que o escorpião faz
parte da minha vida, porque sou do signo de escorpião e essa palavra --
escorpião -- é terrível para os moradores do interior de Minas onde cidades
inteiras eram ameaçadas, invadidas por escorpiões.
Até Belo Horizonte, capital, era famosa pelo número de
escorpiões que possuía, tanto que a Prefeitura pagava -- o Nava conta isso nas
memórias -- não sei quantos réis, 200 réis ou mil réis, a quem levasse um
escorpião. Era o preço base. As pessoas então passavam a caçar escorpiões como
meio de vida ou pelo menos para completar o seu orçamento.
O escorpião é muito ligado à minha vida por essa razão,
embora eu não acredite na importância dos signos do zodíaco -- acho isso uma
coisa mais literária ou mágica do que outra coisa, não é nada racional -- o
escorpião de que eu fugia no porão lá de casa, com medo de ser mordido por ele,
era paradoxalmente um bicho que eu trazia dentro de mim, por ter nascido dentro
desse signo, compreendeu?
Essa é a interpretação que eu dou. Já o poema
"Confissão" -- "Escorpião mordendo a alma, o pecado graúdo
acrescido do outro de omiti-lo, aflora noite alta em avenidas úmidas de
lágrimas, escorpião mordendo a alma da pequena cidade". Aí, tanto quando
eu posso me lembrar, era associando à ideia do escorpião, do animalzinho
perverso, maligno da nossa cidade, ao escorpião do pecado, à tortura, à
angústia que a criança do interior, educada no princípio do século, sentia com
a noção de pecado.
Você pode imaginar como nós sofríamos porque não tínhamos
ainda bastante lucidez de espírito para julgar na época o que fosse ou não
pecado. Se era pecado mastigar a hóstia no ato da comunhão, muito mais pecado
seria praticar, digamos, o onanismo, ou tentar ver o nu feminino, o que aliás
era impraticável.
Mas essas coisas, essas tentações da idade, da infância e da
adolescência, eram todas consideradas pecados graves. Era como se o sentimento
desse pecado passasse a ser pecado realmente, porque nós o sentíamos como tal.
Isso nos aferroava a alma como um escorpião.
Entendo como uma das características da sua poesia, o
movimento de lançadeira, explícito por exemplo, no poema "Ciclo".
"Sorrimos para as mulheres bojudas que passam como
cargueiros adernando.
(...) Sorrimos também -- mas sem interesse -- para as
mulheres bojudas que passam, cargueiros adernando em mar de promessa
contínua".
Em outros poemas do tipo "Bolero de Ravel", o
movimento de lançadeira está explicito, mas não tanto:
"Círculo ardente (onde) nossa vida para sempre está
presa
Está presa..."
Você admite estabelecer uma relação entre esse movimento de
lançadeira e o desejo sexual com base no intermitente mas perene que
caracteriza ambos?
Bem, esta é uma descoberta que você fez e que não me havia
acudido, sabe? Gosto muito de ver a reação do leitor, porque, às vezes, ele
ilumina o autor. O leitor percebe aquilo que o autor não tinha cogitado, de
modo que eu admito.
No poema "A um Hotel em Demolição", a imagem
sensual e nostálgica expressa nos versos:
"Bonbonniéres onde o papel de prata
Faz serenata em boca de mulheres"
É uma alusão ao bombom "Serenata do Amor" que, à
semelhança do Hotel Avenida, faz parte de um passado onde o amor era garoto e a
cidade, ao invés de cruel, conseguia ser tradicional?
Não me recordo se tinha em mente este bombom chamado
"Serenata do Amor", que se tornou tão popular. É possível que me
ocorresse a aproximação. O que me parece que tentei fazer foi apenas criar uma
rima interna -- prata, no final do verso, rimando como serenata, dentro de um
outro verso -- porque, como você sabe, o bombom é, em geral, embrulhado naquele
papel prateado que fazia as delícias da gente na infância. Quantas vezes eu
alisava aquele pequeno papel prateado e o guardava não sei pra quê, já que não
tinha a menor utilidade...
Mas a serenata, embora de mulheres, é porque as mulheres,
gostando de bombons, sentiriam um prazer, a meu ver, correspondente àquele que
sentiriam ouvindo a serenata dos seus apaixonados na porta da rua.
Carlos, você podia contar de novo aquele caso de zoofilia do
poema "O Sátiro": "Hildebrando insaciável comedor de
galinha"?
Não me fale, isso é um dos maiores dramas da minha vida
literária que extrapolou para a vida comum. Cometi a imprudência de recordar um
fato ocorrido na minha infância, em que um rapaz morador na minha cidade do
interior, foi acusado de praticar o ato sexual com uma pobre galinha, se é que
não fazia isso frequentemente. Talvez fizesse, pois lhe tinham dado o apelido
de Dedê Galo, o que faz supor que a prática era costumeira.
Em suma, com a maior falta de critério, eu contei essa
estória sem sequer me dar ao trabalho de trocar o nome da pessoa. Realmente,
confesso, foi uma falha minha porque magoei uma pessoa mais idosa do que eu,
pois eu era garoto quando ele era rapaz, e isso irritou-o muito.
Ele resolveu tomar uma desforra. Deu uma entrevista em que
acusava minha família de coisas tenebrosas. Chocou-me ele ter colocado na dança
minha família, que não tinha culpa nenhuma no cartório, tanto mais que os fatos
que ele mencionava tinham sido deturpados. Ainda que houvesse um laivo de
verdade, não correspondiam à realidade. Era uma ofensa gratuita. Pelo que, uma
das pessoas visadas por ele, meu irmão, pessoa muito briosa e assomada, resolveu
comprar a briga, mas não para me defender, e sim defendendo-se e acusando o tal
Dedê.
Daí resultou uma troca de cartas muito desagradável e eu fui
obrigado, me senti no dever de liquidar o assunto escrevendo ao jornal que
havia publicado a entrevista da pessoa.
Pedi-lhe para fazer aquilo que o Eça de Queirós pediu a
Pinheiro Chagas. Há um romance de Eça em que o Pinheiro Chagas se sentiu
retratado de maneira mordaz. Reclamou, e Eça então escreveu um artigo muito
interessante que terminava assim: "Por favor, retire-se da minha
personagem". Isso não ficou assim porque, durante um mês ou dois, em
seguida, invariavelmente depois do almoço, o telefone tocava e uma voz
desconhecida me dizia os piores desaforos. Eu ouvia aquilo com a humildade
devida e também porque me parecia que essa pessoa teria algum motivo para se
ofender. Não seria um ataque gratuito; ela devia ter-se ferido por alguma coisa
que eu fiz.
Até que afinal liguei os fatos -- certa lentidão mental -- e
a última vez que essa pessoa me falou eu reagi com uma série de xingamentos
terríveis que nunca mais ele falou. Então exorcizei essa pessoa e parece, pus
ponto final na estória, que foi muito desagradável, porque confesso a você que
eu não tinha intenção de ferir ninguém. Não custava nada alterar a qualificação
dele, o nome e a profissão. Foi mesmo, da minha parte, um erro.
Como você explica a perenidade da sua poesia com imagens
para o seio materno, do tipo:
"Sorvetilúnio
Para o resto da vida, queijo, flã
Níveo de gelatina aldebarã".
Imagens das quais transborda uma sensualidade casta que,
infelizmente, há muito foi abolida?
Esse sorvetilúnio, o queijo, o flã níveo de gelatina
aldebarã, realmente são imagens um pouco desconexas, à primeira vista,
surpreendentes. Mas como se referem à criança que viu o eclipse de 1913, o que
eu quis fazer foi mergulhar na consciência infantil e despertar nela a ideia de
um sorvete do luar e das coisas que as crianças gostam, como o queijo e o flã.
Usei aldebarã porque, tratando-se de eclipse, portanto de um episódio ocorrido
no espaço celeste, a estrela aldebarã podia ser introduzida aí. São recursos
poéticos, um pouco arbitrários, mas que obedecem mais a um objetivo estético do
que propriamente à intenção de fazer qualquer referência ao seio materno ou
qualquer outra conotação de ordem sexual. Agora, mais uma vez, eu insisto em
que o leitor tem o direito.
O Drummond de 1984 combina mais com a sensualidade marota da
Elzirardente, uma Elzira que, pelo visto, queimava feito aguardente do poema
"O Doutor Ausente", ou com a sensualidade recatada, quase pudor, dos
"joelhos em tulipas", das "grades de seda", "da penugem
de braço de namorada" e tantas outras imagens do tipo das três
relacionadas acima?
A Elzirardente, para ser bem explicada, eu devo assinalar o
seguinte: esses versos que você cita são de três livros que eu escrevi com as
minhas memórias infantis, quer dizer, são fatos realmente acontecidos,
situações verdadeiras que adaptei, naturalmente com as liberdades que o poeta
se permite.
Em primeiro lugar, não quanto ao Hildebrando, nos demais fui
trocando nomes e situações, para que o fato em si aparecesse sem essa moldura
de realidade.
No caso, era um delegado de polícia, formado em direito,
excelente homem de boa família, que tinha uma companheira, mulher humilde que
vivia com ele. Ao mesmo tempo esse homem, por uma espécie de decadência devida
à falta de estímulo intelectual do meio, à vida limitada, sem horizonte, sem
nada, começou a beber, e do vinho bom passou à cachaça, que é o uísque dos
pobres.
Então, nessa Elzirardente, há uma conotação com aguardente
porque a mulher que naturalmente despertava desejos eróticos podia ser
considerada uma espécie de cachaça, que ele sorvia a tragos mais ou menos
largos, conforme a inspiração.
O elemento surpresa que você introduz em poemas como, por
exemplo, "O Quarto em Desordem", pela menção:
"Cavalo solto pela cama
A passear o peito de quem ama."
Fechando um soneto que, eu diria, clássico, pode ser
entendido como um dado erótico da poesia modernista?
Em primeiro lugar, confesso a você que não considero
clássico o meu soneto porque, repare, ele não tem um esquema de rimas regular.
Então dificilmente merece esse nome.
Agora, "o cavalo solto pela cama" é a imagem dos
movimentos convulsos, da agitação frenética de uma atividade sexual na cama. É
isso que tentei fazer. Se é um dado do Modernismo, eu não poderia ter essa
pretensão porque nunca tive em mente estabelecer padrões para a poesia
modernista. Sou um beneficiário do Modernismo, uma das pessoas que vieram
depois, não um inovador propriamente.
Mas o fato de ser um soneto, que não é sua forma usual de
poesia, já não seria um dado diferente?
Realmente o soneto não é frequente na minha poesia, mas eu
acho que não é frequente na obra dos poetas modernistas em geral, pelo menos
daqueles a partir da geração de 30, a que pertenço.
Você pode folhear toda a obra de um Augusto Frederico
Schmidt e não encontra um soneto. Encontra algumas composições em catorze
versos com a disposição clássica do soneto, mas sem o espírito dele.
O soneto tem uma estrutura, uma organização interna, a
começar pela exigência de métrica e de rima, que os poetas modernos, em geral,
não observam. Outro é o Murilo Mendes. Os sonetos de Murilo, que eu saiba, não
existem. Se houver algum, como também os do Schimidt, não são sonetos
regulares. Na minha obra também, o soneto é pouco frequente. Isso pela razão de
que o Modernismo abriu avenidas novas em matéria de versificação. Ele deu um
impulso muito grande ao verso livre. É um verso talvez mais difícil de manejar,
porque não tem limites, não há legislação técnica sobre o verso livre. Há quem
diga que ele alcança o limite do ato de respirar da pessoa. Quer dizer, se a
pessoa não consegue enunciar o verso de um simples golpe, ele não é mais um
verso, serão dois ou três versos.
Então, o fato de a metrificação comum alcançar, no máximo,
doze sílabas -- só os versos chamados "bárbaros", de Carlos Magalhães
de Azeredo, que foi nosso embaixador em Roma, é que tinham mais do que doze
sílabas -- mas aí já é uma metrificação latina, que não temos na língua
portuguesa, oferece ao soneto alguns problemas técnicos que não interessam ao
Modernismo.
Por outro lado, é preciso saber fazer um soneto. Acredito
que eu tenha sentido certa humilhação, vendo que os meus poemas não eram
sonetos e que na realidade eu não os fazia. Então experimentei fazer. Acredito
que haja na minha obra toda, no máximo, vinte sonetos. Por outro lado, existe a
obra de um poeta modernista chamado Alphonsus de Guimarães Filho, já de uma
terceira geração, em que a quase totalidade é de sonetos. Ele se exprime muito
mais no soneto do que no verso livre, ao contrário do que acontece comigo, que
me sinto mais à vontade no verso livre.
O fato de ser um soneto, a meu ver, significa apenas o
seguinte: na ocasião, eu senti um impulso natural para fazê-lo.
Em geral, a composição poética se faz por uma espécie de
caminho natural -- a pessoa se deixa levar por um ritmo. De certo modo, antes
de escrever o poema ela já traçou um esquema mental pelo qual o poema aparece
organizado em alexandrinos, em decassílabos, em oitavas, em décimas, rimado ou
não rimado. O que se tem a dizer, normalmente, é condicionado por esse esquema
mental que se elabora um pouco misteriosamente.
Acredito que, no meu caso, o soneto possa ser considerado
uma exceção.
No poema "Mulher Vestida de Homem" o nome fictício
Márgara encobre a personagem de um caso real dessa inclinação para vestir
roupas do sexo oposto que Havelock Ellis denominou "eonismo", ou o
poeta tirou da imaginação a fascinante mulher-homem que à noite se travestia
para compensar a fragilidade na cama?
Não, a Márgara existiu realmente. É um poema de um dos meus
livros de poemas da infância, em que as coisas que me impressionaram muito
aparecem agora, na idade madura, transportadas para a poesia.
Não tinha esse nome de Márgara porque já então eu devo ter
tido bastante experiência para não incidir no erro do "Sátiro" -- não
quis dar nome aos bois -- mas era uma coisa que me parecia muito estranha.
Constava (e minha mãe mesmo dizia isso com certo assombro)
que determinada senhora da sociedade itabirana, à noite se vestia de homem e
saía pelas ruas não se sabe bem para fazer o quê -- ela não ia praticar nenhum
ato estranho porque não havia condições -- as pessoas todas estavam dormindo.
No interior se dormia cedo, não sei se ainda se faz isso, por causa da
televisão.
Essa mulher era realmente estranha, porque tinha, não digo a
pretensão de parecer-se com os homens, mas é possível que a inspirasse certo sentimento
de inferioridade que a mulher experimentava até o começo do século. Sentia-se
dependente do homem, obrigada a obedecer aos seus caprichos de toda natureza. E
a calça comprida, o paletó, eram símbolos de masculinidade.
Não se admitia que um homem vestisse saia, que usasse aquele
saiote escocês dos meus antepassados. Era obrigatório o terno completo.
Uma mulher tentando, à noite, quando todos já estavam
dormindo e havia pouca chance de ser descoberta, andar vestida de homem, devia
ser o máximo para ela.
Em Machado de Assis, a fixação pelos braços das mulheres é
evidente. Em sua poesia, pernas e coxas femininas se destacam. Isso começou em
Belo Horizonte quando você era adolescente. Como foi?
Acho, Lúcia, que começou antes. Começou em Itabira, porque
não havia a menor informação sobre o corpo feminino. Os vestidos alongavam-se a
ponto de esconder até os sapatos, e as pessoas, no máximo, arregaçavam um pouco
o vestido para não se sujarem na lama da rua, nas poças d'água. O máximo que se
podia ver de uma mulher era o bico do sapato.
Indo para Belo Horizonte já rapazola, com essa imagem
precária da mulher, e encontrando ali um veículo muito útil para se recolher
informação um pouco maior, que era o bonde, onde as mulheres, para subir,
tinham de, contra a vontade, mostrar um pouco da perna, aquilo era uma delícia,
pelo menos para pessoas do interior, como eu. Já para os rapazes nascidos em
Belo Horizonte, não seria tanto assim.
Note-se que eu não tinha cinema na infância. O cinema chegou
precariamente, com sessões no domingo à noite, quando não chovia, quando as
estradas não estavam encharcadas e o burrinho, levando a mala do correio,
levava também os discos, as latas dos filmes.
Nós conhecíamos pouco da vida e conjecturávamos muito. É
como um selvagem que vai à cidade e encontra todas essas máquinas, esses
recursos da civilização: fica espantado; a gente se espantava diante da perna,
já não direi da coxa, que essa não se via de maneira nenhuma. A palavra coxa,
eu a considerava altamente erótica.
A gente se consolava com a perna e notadamente com a barriga
da perna, talvez também porque essa expressão -- barriga da perna -- já fazia
suspeitar alguma coisa mais além. Eram suspeitas, indícios, conjecturas, que
formulávamos em torno do corpo feminino.
Daí o fato de Mário de Andrade ter identificado na minha
poesia aquilo de que eu não me tinha dado conta: a quantidade enorme de pernas
que passam -- o bonde passava cheio de corpos, mas eu só via pernas na hora de
subir. Freud explica isso, não é...
Estamos mesmo em Freud. Segundo Freud, "o amor sexual
proporciona as mais fortes sensações de prazer, constituindo-se no protótipo do
anseio de felicidade em geral. Todavia, uma pessoa nunca está menos protegida
contra o sofrimento do que quando ama e nunca está mais desamparadamente
infeliz do que quando perde esse amor". (Wilhelm Reich - "A Função do
Orgasmo"). Você mesmo já escreveu no poema "Elegia": "Amor,
fonte de eterno frio". Assim sendo, por que queremos todos o amor, a
despeito de tudo que possa nos causar de tristeza e dor?
Não creio que, conscientemente, qualquer um de nós procure a
tristeza e a dor. Mas há de haver uma força oculta dentro de nós, que acaba
paradoxalmente procurando essas coisas. É um sentimento de autodestruição,
realmente nebuloso. Não se procura isso conscientemente.
A gente procura o amor como fonte de realização plena,
evidentemente. Mas está mais do que provado que essa realização nunca é
desacompanhada de grandes tremores de terra, grandes convulsões, e nós sabemos
o preço disso, porque há uma história que, dependendo da nossa experiência --
ela vem nos livros, nas óperas, na pintura -- mostra as tristezas do amor. É
uma procura talvez masoquista, mas que faz parte da natureza humana. Não creio
que alguém aspirasse a um amor puramente tranquilo, celestial, mesmo porque, na
prática, está demonstrado que é impossível.
Quais as influências literárias que você foi recebendo desde
que começou a fazer poesia?
Olha, essas influências são inúmeras, e não são simplesmente
literárias, são de toda natureza. O "Almanaque Bristol" da minha
infância foi uma influência que eu senti profundamente. As farmácias antigas
tinham um cheiro especial, devido à manipulação de certas essências que exalavam
um perfume muito agradável. Esse cheiro vinha acompanhado dos almanaques que a
gente ganhava. Almanaques publicados pelos laboratórios, a Bayer e o Elixir
Capivarol faziam isso.
A leitura daquilo -- nos almanaques havia anedotas,
acrósticos, enigmas, cartas enigmáticas e versinhos também -- foi das primeiras
leituras que eu tive. Em seguida as revistas semanais do Rio -
"Fon-fon" e "Careta" - que eu pedia emprestado. Já
atingindo assim uns dez, doze anos, eu tinha uma pequena mesada. Então, eu
mesmo adquiria as revistas com grande orgulho. Colecionava aquilo, guardava com
um ciúme louco, ninguém podia pôr as mãos em cima delas. Foram essas as minhas
influências literárias.
As revistas já me traziam Olavo Bilac, além dos versos de
outros poetas e aí eu já me sentia mais familiarizado com a literatura. Depois
vieram os livros que meu irmão mandava para mim. Ele era estudante de Direito
no Rio, lia os livros de Fialho de Almeida, Flaubert (em português), Antônio
Patrício, poeta português pouco conhecido, de que eu gosto até hoje, Antônio
Nobre, outro poeta muito estimado, Eça de Queirós, espécie de autor universal
para o Brasil. Não havia brasileiro que se prezasse que não apreciasse Eça de
Queirós. As pessoas imitavam-no, usavam suas expressões. Era uma grande
influência.
Tive essas influências todas. Depois, através de meu irmão,
fui adquirindo um conhecimento maior dos simbolistas franceses, Verlaine,
Mallarmé, Rimbaud, etc. E me apaixonei por eles. No Brasil, esses poetas
refletiam-se em Álvaro Moreyra, em Eduardo Guimarães, do Rio Grande do Sul, e
no nosso velho Alphonsus, espécie de ídolo da mocidade do meu tempo.
Através dos modernistas, atravessando os modernistas,
cheguei a Manuel Bandeira e Mário de Andrade que foram, realmente, os dois
encontros literários mais importantes da minha vida. A esses devo praticamente
tudo, porque foi o gosto da poesia de Bandeira, a delicadeza, o mistério dessa
poesia que me encantaram, como foi também a teorização, a abertura de novos
pontos de vista críticos que Mário me sugeriu.
A poesia do Mário nunca me influenciou. A de Bandeira, sim.
Essas foram as grandes influências literárias da minha vida e influências
humanas.
Eu acho que uma pessoa humilde, a minha ama-preta, foi uma
influência na minha vida, influência existencial, mas que refletiu na
literatura, porque tudo influi na gente, a casa onde se nasceu, os móveis, os
objetos, os companheiros de infância...Nós somos realmente um cadinho de
influências.
E Machado, como é que ficou?
Acho que houve uma intenção inconsciente minha de eliminar o
Machado, porque, de tal maneira ele me persegue que quando estou aqui
conversando, de repente há uma interrupção qualquer, por motivo de um café ou
coisa que o valha, então eu mergulho na estante, pego Machado e abro em
qualquer página. É uma fatalidade na minha vida. Talvez seja por isso que eu
gostaria de esquecê-lo.
"Não procede historicamente a afirmação de que as
grandes conquistas culturais da humanidade, na arte, na literatura, são frutos
da sexualidade reprimida, mesmo porque "não há sublimação, por mais
perfeita que seja, que não ameace cortar a fala natural do corpo, expressão que
apenas o amor sexual pode transmitir com plenitude." (Gilbert Tordjman -
"Chaves da Sexologia"). O que o poeta pensa disso quando o amor, nem
sempre correspondido, tem inspirado alguns de seus mais belos poemas?"
Não concordo em que a idéia de criação artística ou
literária esteja ligada à circunstância ocasional de repressão. Longe disso. O
espírito nunca se aprisiona. Cervantes escreveu uma parte do "Dom
Quixote" na cadeia, em Sevilha, como antes escrevera "La
Galatea" no cativeiro em Argel.
Por outro lado, não se pode considerar como de vida sexual
reprimida a vida de Lord Byron, um grande mulherengo, e a obra dele -- embora
não seja muito lida -- é uma grande obra literária. Então eu acho que a
plenitude amorosa funciona tão bem quanto a repressão. É um impulso natural do
ser humano. Não há essa influência negativa da repressão quanto à criação
literária. Esta é uma forma de reagir até contra a opressão. A pessoa proibida,
impedida de publicar, de escrever publicamente, de fazer livros, músicas ou
teatro, cria de qualquer maneira.
A divulgação da criação é que sofre dificuldades, mas o ato
da criação continua livre.
"Porque preciso do corpo
Para mendigar Fulana,
Rogar-lhe que pise em mim,
Que me maltrate...Assim não." (O Mito)
É sabido que até as penitências do religioso da Idade Média,
que se impunha cilícios, eram tentativas, nitidamente masoquistas, para atingir
a satisfação sexual. A mulher, pela própria tradição cultural -- em que pese a
recente liberação de costumes -- é muito mais passiva que o homem nas relações
sexuais. Você percebe nessa passividade feminina traços de masoquismo, seja nos
gestos de submissão ao parceiro, seja na renúncia aos próprios ideais?
Lúcia, eu acho que isso já acabou, sabe? Não há mais esse
estado passivo da mulher. Ela pode tomar a iniciativa, pelo menos encarar a
proposta, a sugestão do homem, com bastante liberdade para aceitar ou recusar,
ou para ela própria promover, se for o caso.
É realmente como você diz: houve uma repressão de costumes,
mas a mulher está, no momento, adquirindo consciência do seu ser como ser
humano, sem obrigação de obedecer aos caprichos ou às ordens masculinas.
Na poesia erótica portuguesa o homossexualismo é presença
constante. Na sua poesia, as alusões a esse desvio são raras e sutis, sendo que
o poema "O Rapto" é um desses poucos exemplos. Você podia falar sobre
a figura à qual se refere esse poema?
Pois não. Devo dizer que o homossexualismo sempre me causou
certa repugnância, que se traduz pelo mal-estar. Nunca me senti à vontade
diante de um homossexual.
Com o tempo, havendo agora uma abertura imensa com relação
ao desvio da homossexualidade, o homossexual não só ficou sendo uma pessoa com
autorização para ir e vir como tal, mas chega a ponto de isto ser exaltado como
riqueza de experiência, como acrescentamento da experiência masculina.
Acredito que na minha obra o único caso de poesia referente
ao homossexualismo é esse. Mas exatamente por isso, porque o homossexualismo
nunca foi um fato que me interessasse poeticamente, nem mesmo na vida real.
Esse "Rapto", exceção na minha poesia, resultou de
uma leitura, de uma operação puramente literária. Me lembro ter lido, na
mitologia, que Júpiter uma ocasião se apaixonou por um rapaz. Júpiter era
terrível, não se podia chamá-lo de homossexual nem bissexual, era pólissexual.
Como deus maior, deus dos deuses, ele se permitia tudo,
tinha todas as possibilidades. Apaixonou-se por um adolescente. Há as versões
mais variadas. Numa delas esse rapaz era um príncipe, na outra era um pastor.
Pois Júpiter encantou-se por ele, e para conquistá-lo, transformou-se numa
águia, desceu do Olimpo, bicou o rapaz e transportou-o pelo ar, levou-o para o
Olimpo. Lá, transformou-o numa coisa engraçada, no que se chamava de escanção
-- homem que serve bebida nos festins -- servia a Júpiter na intimidade e aos
deuses na vida social do céu.
Esse tema de Júpiter raptando Ganimedes -- era o nome desse
cavalheiro -- é muito explorado pela arte. Nós temos o rapto de Ganimedes por
Júpiter em Michelangelo, em Ticiano, em Rembrandt, em outros artistas de que
agora não me lembro. Ficou sendo uma situação clássica.
Agora, ao que eu aludo aqui, é também ao homossexualismo no
Brasil. Falando "na pérola dúbia das portas de boate", quis
significar o movimento noturno do homossexualismo, que é quando ele se
manifesta mais publicamente. O homossexualismo sai à noite, à procura de
parceiro na boate ou na rua, na avenida ou em qualquer parte.
Em "Poesia e Prosa" encontrei um poema --
"Tortura" -- que aborda a zooerastia e outro - "O Sátiro" -
no qual é contado um caso de zoofilia. Da mesma "Poesia e Prosa"
constam diversas imagens com bichos e no "Amor Natural" aparecem
algumas afinidades com o mundo animal. Se o "sadismo é uma característica
do homem, adquirida em período tardio do seu desenvolvimento" (Wilhelm
Reich - "A Função do Orgasmo") e considerando "que o homem se
distingue do animal não por uma sexualidade menor, porém mais intensiva --
disposição permanente para relações sexuais" (Wilhelm Reich - "A
Revolução Sexual") como você vê, Carlos, o fato de que o cruzamento entre
macho e fêmea ocorra na natureza sem maiores incidentes enquanto o intercurso
sexual entre homem e mulher tem mais de desencontro que encontro, haja vista a
frequência, por exemplo, dos chamados crimes passionais?
Não concordo com o nosso amigo Reich quanto a essa afirmação
de que "o sadismo é uma característica do homem adquirida em período
tardio do seu desenvolvimento". O sadismo é uma característica infantil,
por excelência. Posso dizer isso com experiência própria. Num poema de
"Boitempo", falo de um gato cujo rabo coloquei um carretel a duras
penas, segurando com muita força para impedir que ele me mordesse. O rabo ficou
inflamado a ponto de que tirar dele o carretel, foi um problema. Meu irmão é
que tirou, eu não tinha condições para isso. Pratiquei esse ato por pura
maldade, não tem outra explicação. Foi um ato perverso, sem sentido -- coisa
que os animais não fazem -- o animal ataca e mata obedecendo à necessidade de
alimentação, de sobrevivência, coisa que o homem não tem porque pode subsistir
sem eliminar seu parceiro.
Acho que o cruzamento entre macho e fêmea ocorre realmente
sem maiores incidentes, mas, na realidade, o animal irracional é aquele que tem
a sabedoria, o privilégio de viver a sua vida praticando sexualidade, sem
remorso, sem sentimento de culpa, com naturalidade e na época adequada. Ele
está programado. Nós não estamos ou desobedecemos à programação da natureza.
Nós nos permitimos um interesse constante, obsessivo, doentio quando, na
realidade, a capacidade de satisfação desse desejo não corresponde à obsessão.
Imaginamos um ser humano com interesse luxurioso para com as mulheres que
passam, como se ele desejasse dormir com todas. Há um excesso de pretensão do
animal humano com relação às suas potencialidades.
"A Carne é triste depois da felação" ("O Amor
Natural")
"Sessenta e nova vezes boquilíngua" ("O Amor
Natural")
A felação, mencionada nesses poemas de "O Amor
Natural", é um refinamento erótico ou perversão que, pelo acordo mútuo,
transformou-se em desvio como ato ocasional entre parceiros íntimos?
Eu acho que esses casos citados, não são perversões da
natureza, estão integradas na natureza. O amor erótico, o amor sexual, o amor
carnal é legítimo porque dele depende a conservação da espécie. As formas de
realização desse amor não estão codificadas. Não há nenhum livro no mundo que
estabeleça que esta forma é normal e outra não. A condição para o ato é
exatamente essa -- é aquilo dar prazer, se dá prazer, não é pecado.
São Paulo já dizia: "Amai e fazei o que
quiserdes". A perversão seria a tentativa de obter de um determinado ato,
determinada variedade de prazer diferente do normal que seria o prazer da dor.
Isso sim é o único ato que eu acho vicioso, o ato sexual praticado com intenção
de tirar sangue da vítima, de bater-lhe, de humilhá-la, chicoteá-la. Isso já
não é natureza, é realmente o desvio do instinto e não pode ser aceito como
erotismo.
"Viste em mim teu pai morto e brincamos de incesto.
A morte entre nós dois tinha parte no coito.
O brinco era violento, misto de gozo e asco
E nunca mais, depois, nos fitamos no rosto" (de
"Fugitivo Hotel na Colcha de Damasco" - "O Amor Natural")
O poema citado assinala a passagem do sexo natural para o
sexo cultural, sujeito de códigos dentro dos quais, nem mesmo nos jogos
amorosos é permitido brincar de incesto?
Sim, realmente há essa passagem que pode ser assinalada.
Sobre esse poema aparentemente chocante, devo dizer, como informação, que ele é
imaginário. Resultou de uma conversa que eu tive certa vez com uma mulher. Ela
declarou ver em mim o pai que já tinha morrido. Isso a fazia sentir-se atraída
por mim. Achei curiosa a associação de um defunto com uma pessoa viva.
Tanto em alguns poemas da "Poesia e Prosa" como em
diversos de "O Amor Natural" a associação amor/morte está presente:
Ah, coito, coito, morte de tão vida". ("A
castidade em que abria as coxas" - " O Amor Natural")
Ovídio já intuiu uma certa cumplicidade entre Eros e Tânatos
que, na poesia erótica portuguesa já pretendia - "Seja o amor realmente
irmão da morte" ("Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e
Satírica"). A propósito dessa tônica, o que você tem a dizer?
Isto é um conceito clássico de poesia, a ligação da morte
com o amor. Já não é da poesia, é da psicologia. O êxtase amoroso é uma forma
de morte porque depois dele os sentidos se apaziguam, ficam como que
paralisados, mortos após a realização.
A morte, apesar do aspecto aterrorizante que ela tem para as
pessoas vivas, em geral, encerra também certa fascinação, o que explica o ato
dos suicidas.
A morte atrai. Como o que se chama de "belo
horrível", como um vulcão que atrai para a morte.
Ela tem esse duplo aspecto de espalhar o medo e ao mesmo
tempo certa curiosidade que pode se transformar em fascinação. É um conceito
tradicional em poesia. Me lembro, não sei que poeta italiano, não sei se foi
Leopardi que falava que, no momento do prazer, um desejo de morrer se sente.
"Por que viria ofertar-me
Quando a tarde já vai fria,
Sua nívea rosa preta
Nunca jamais visitada
Inacessível naveta?" ("A Moça Mostrava a
Coxa" - "O Amor Natural")
A "inacessível naveta" -- ao invés da consagrada
rima dos poetas eróticos portugueses -- foi uma questão de estética ou pudor?
Foi uma questão prática. Convidado a publicar esse poema
numa revista de São Paulo -- dessas revistas consideradas para adultos --
pareceu-me que seria talvez chocante empregar a palavra que os portugueses
usam, então servi-me dessa -- naveta -- e senti um certo prazer na substituição
porque acho a palavra naveta muito bonita. Ela dá um fecho delicado ao poema
que poderia chocar de outra maneira.
Você já me disse que nunca precisou do divã do analista. Em
que medida a poesia concorreu para isso?
Realmente, mesmo que eu sentisse necessidade do divã seria
impossível porque não havia o divã no Brasil. Os divãs existiam, mas divãs
comuns. Ninguém se lembraria de deitar neles e dizer coisas da sua infância,
coisas tenebrosas, para um especialista.
A figura do analista veio muito depois da minha infância e
da minha mocidade. E já agora, a essa altura da vida, acho que nenhum analista
me receberia, nem haveria mais necessidade.
De fato, a poesia exerceu sobre mim um papel bastante
salubre ou tonificante, procurando sem que eu percebesse, clarear os aspectos
sombrios da minha mente.
Tive uma infância bastante confusa e triste, e uma mocidade
tumultuada. Sentia necessidade de expandir-me sem que soubesse como. A conversa
com os amigos não bastava porque, talvez, eles não entendessem bem os meus
problemas. Eram questões que vinham, digamos, de gerações anteriores, de
casamentos de tios com sobrinhas, de primos com primas, tudo isso se acumulando
na mente, criando problemas de adaptação ao meio, de dúvida, de perplexidade,
etc...
Então comecei a fazer versos sem saber fazê-los, por um
movimento automático. Foi uma tendência natural do espírito e senti que, pouco
a pouco, ia aliviando a carga de problemas que eu tinha. Como se vomitasse.
Nesse sentido, a poesia foi para mim, um divã.
Funcionou como catarse, então...
Sim, como catarse, é a palavra certa.
Carlos, muito obrigada. O que eu pretendi com esse tipo de
pergunta foi dar uma panorâmica da sua poesia, tanto através de "Poesia e
Prosa" como de "O Amor Natural". Evidentemente, uma panorâmica
centrada no erotismo porque os outros aspectos foram desprezados nessa
entrevista. Nós estamos pesquisando a sua poesia tendo por motivo o erotismo.
Muito obrigada. Acho que você esclareceu bastante. Sempre que for preciso,
tomarei a liberdade de voltar a perguntar, mas, por hoje, é só. Muito obrigada.
E eu agradeço a você, porque uma pessoa que se preocupa com
a minha poesia e descobre aspectos menos estudados dela, com a paciência, a boa
vontade e, ao mesmo tempo, com o seu senso crítico muito agudo, só pode me dar
uma grande alegria. Obrigado a você.
____________
Publicado originalmente em: Folha de S. Paulo, caderno
Ilustríssima, em 08 de julho de 2012, por Marcelo Bortolloti (Rio de Janeiro).
Fotos: Acervo CDA/Cosac Naify/Divulgação e Arquivo Agencia
do Estado (AE)
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