A escritora Carolina Maria de Jesus
Publicado originalmente no site do El País Brasil, em 18 de março de 2018
A vida de Carolina de Jesus além da favela do Canindé, seu
quarto de despejo
Nova biografia da autora que faria 104 anos na semana que
passou busca desmistificá-la
Por André de Oliveira
Carolina Maria de Jesus está em eventos literários, em
debates públicos, em peças de teatro, no cinema, em letras de música, vira e
mexe também na imprensa. Só que Carolina já esteve em ainda mais evidência. Seu
livro de estreia, Quarto de Despejo, quando lançado, vendeu 10 mil cópias em
cerca de uma semana. Só em São Paulo. Naquela época, 1960, foi alçada do dia
para noite a figura única, requisitada por todos. Viveu dias intensos, foi
traduzida em mais de duas dezenas de línguas, chegou a Europa, Ásia, América
Latina. Depois acabou saindo de cena, morreu em 1977, em relativo esquecimento.
Na semana em que ela completaria 104 anos, o movimento de resgate de sua obra e
vida surge como uma forma de ocupar um lugar que a escritora conquistou, mas
que o tempo – e certa dose de descaso – fez esquecer.
O lançamento do livro Carolina: uma biografia, editado pela
Malê, na última quinta-feira, 15, em São Paulo, e no próximo dia 20, no Rio,
junta-se aos esforços de rediviva por qual a obra da escritora tem passado nos
últimos dez anos. Para seu autor, o jornalista Tom Farias, a principal intenção
é humanizar a figura de Carolina de Jesus, tentando desvinculá-la do mito. A
história mais conhecida é de que no final da década de 1950, o jornalista
Audálio Dantas topou com Carolina na favela do Canindé, zona norte de São
Paulo, e depois de uma breve conversa, ficou sabendo que aquela mulher negra,
que trabalhava na maior parte do tempo como catadora de papel, e que criava
sozinha três filhos pequenos, era autora de dezenas e dezenas de cadernos.
Entre eles, um diário extensíssimo, que, editado por Dantas, virou o livro
Quarto de Despejo.
O cotidiano da vida no Canindé – o verdadeiro quarto de
despejo do título do livro – narrado por Carolina de Jesus é esquálido,
violento, permeado por doenças, alcoolismo e fome, a fome que, logo de início,
é definida como a escravidão dos tempos modernos. Mas também é cheio de suas
reflexões sobre o Brasil e a vida da mulher negra. No Brasil, o relato
literário recebeu críticas e comentários de escritores e intelectuais como
Sérgio Milliet, Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira. No exterior, Carolina foi
recebida com entusiasmo por Pablo Neruda e Octavio Paz. Agora, com a nova
biografia, Farias pretende colocar luz sobre o que aconteceu antes do sucesso
de O Quarto de Despejo na vida de Carolina. “É claro que o papel do Audálio foi
fundamental para tudo que aconteceu com ela, mas o livro não foi um mero acaso,
mas algo que ela perseguiu durante vinte anos”, diz.
Para Farias, que reconstruiu a história da autora usando as
mais de 5.000 páginas do acervo da escritora – espalhado em diferentes locais
–, a partir de entrevistas com pessoas que conviveram com ela e, por fim, por
meio de pesquisa em jornais e revistas, Carolina, ao contrário do que se pensa,
não nasceu intelectualmente em 1960, com a publicação de seu livro. Assim, a
biografia revela textos e matérias de jornais em que Carolina de Jesus já
aparecia em 1940. “Ela fazia uma ronda pelas redações e rádios, apresentava-se
como 'Carolina Maria, a poetisa negra', e ia oferecendo seus textos para
publicação. Muitas vezes, era olhada de forma enviesada, tratada com desdém,
mas teve alguns sucessos. E, quando não teve sua produção publicada, acabou
virando, algumas vezes, pauta dos jornalistas”, conta.
Uma das descobertas do biógrafo, por exemplo, foi que
Carolina muito provavelmente chegou a viver também no Rio de Janeiro entre 1940
e 1942, quando apareceu como personagem de uma reportagem do jornal A Noite.
Descrita pelo repórter como alguém de olhos com brilho singular, “sintomático
das pessoas de espírito inquieto e perscrutador”, diz em um tom bem humorado
que para viver honestamente na antiga capital do país teve de trabalhar como
cozinheira, mas que, querendo ver se era capaz de fazer bons quitutes, como
fazia bons versos, descobriu que na cozinha “a inspiração falhou
miseravelmente!”.
Com o lançamento de Quarto de Despejo, em 1960, Farias diz
que a recepção calorosa do livro veio acompanhada também de alguns narizes
tortos, que, ao longo do tempo, foram minando a projeção de Carolina. “Ela
passou a ser conhecida como língua de fogo, defendia em entrevistas a reforma
agrária, fazia elogios à revolução cubana e, praticamente sem estudos formais,
despertou inveja do status-quo. Os livros subsequentes foram praticamente
ignorados e ela, depois de ter conseguido sair da favela, morando no bairro de
classe média de Santana, isolou-se em uma chácara na região de Parelheiros
[extremo sul de São Paulo]”, conta. A história de Carolina, para além de seu
sucesso, é mesmo um resumo da desigualdade brasileira.
“Em certo ponto, Carolina percebeu que, em suas próprias
palavras, tinha virado um artigo de consumo, alguém que era vista com
curiosidade e isso a deixou deprimida”, diz Farias. Nascida em Sacramento, no
estado de Minas Gerais, em 1914, num local que ainda recendia (e de fato vivia)
a lógica da escravidão, Carolina Maria de Jesus sempre se enxergou como uma
criadora e perseguiu essa imagem. Tom Farias defende que sua biografia e todo
movimento em torno da autora busca colocá-la exatamente neste lugar. Sem nunca
esquecer que seu livro mais famoso foi dos maiores best-sellers do Brasil e
hoje circula por 46 países, em 16 idiomas, tem três edições em Cuba, quatro no
Japão, despertou um projeto de filme nos Estados Unidos – abortado quando a
autora morreu – sendo um testemunho literário exato da vida de uma mulher
negra.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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