O escritor Albert Camus, autor de 'A peste'
e 'O estrangeiro', entre outros
Foto: Cecil Beaton/Condè Nast Archive/Corbis
Publicado originalmente no site da revista CULT, em 26 de março de 2020
‘A peste’ e o recomeço do olhar
Por Raphael Luiz de Araújo
Em tempos de coronavírus, a crônica A peste (1947), do
escritor franco-argelino Albert Camus, voltou a aparecer na mídia. Além de um
aumento drástico nas vendas na França e na Itália, sua procura também teve um
crescimento de 65% aqui no Brasil nas últimas semanas, segundo matéria de O
Globo. A atual pandemia nos trouxe contexto para voltar ao clássico, seja pelos
seus ensinamentos, seja pelo prazer de sua leitura. É válido se perguntar,
então, como o livro pode impactar nossa forma de olhar para a atual situação.
A peste é a crônica de uma epidemia na cidade de Orã,
Argélia, que ocorreu em um ano indeterminado da década de 1940. Ela é dividida
em cinco partes e foi escrita entre 1942 e 1947. Neste período, Camus também
agiu ativamente no jornal clandestino Combat! e escreveu textos engajados na
luta contra o nazismo, como é o caso de Cartas a um amigo alemão (1945). Anos
mais tarde, ao referir-se publicamente à organização de sua obra, ele a
enquadra no “ciclo da revolta”, sob o mito de Prometeu, juntamente às peças O
estado de sítio, Os justos e ao ensaio filosófico O homem revoltado.
O livro contém reflexões recorrentes na obra do autor, como
a absurdidade da existência, o exílio, o amor, a revolta e a solidariedade
humana. Como analogia, a narrativa e a doença alertam o leitor para uma
constante ameaça política sobre sua vida e direitos. Ela apresenta uma forma de
transformar o modo como vemos o cotidiano ao seu redor, além de retraçar a
história de um destino coletivo, em que o elo entre pessoas de condições
semelhantes prevalece sobre o individualismo heroico. A pintura de tais temas e
o estilo sóbrio do escritor sensibilizam o olhar do leitor a questões sociais e
existenciais que retornam através dos tempos.
Trata-se de um percurso que balanceia empatia pelo
sofrimento humano e distanciamento crítico. Em um processo de gestação que vai
desde as primeiras anotações em 1938, passando por uma redação mais intensa
entre 1942 e 1946, Camus luta para equilibrar documentação, enredo, anedotas e
reflexões filosóficas na sua narrativa. Tal trabalho também era a procura de
uma distância justa, a partir da qual seria possível olhar para o momento
presente ao nosso redor e lhe atribuir uma forma lúcida. Só assim o escritor
cumpriria o que julgava ser o ofício do artista, como definiria em seu famoso
discurso de recebimento do prêmio Nobel anos mais tarde: “O artista forja-se
nesse perpétuo ir-e-vir de si mesmo aos outros, a meio caminho da beleza, da
qual não pode prescindir, e da comunidade, da qual não pode se retirar. É por
isso que os verdadeiros artistas não desprezam nada; eles se obrigam a
compreender em vez de julgar”.
Olhos atentos
Com a epígrafe de Daniel Defoe, logo na abertura o olhar é
direcionado para a possibilidade de leitura em, pelo menos, dois planos: “É tão
válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar
qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe”(Tradução de
Valerie Rumjanek, Editora Record). Portanto, A peste pode ser a representação
de algo que transcende questões de saúde pública em uma cidade sitiada na
Argélia. Por trás dos testemunhos das personagens que a compõem, deve-se
considerar o plano de fundo histórico de sua redação – narra-se indiretamente a
ocupação do exército alemão em Paris.
Era o que vivia Camus enquanto a redigia, no Panelier,
cidade próxima a Lion, e, posteriormente em Paris. No dia em que os alemães
tomam a zona livre do país, em novembro de 1942, ele escreve em seu caderno:
“Como ratos!”. E tais roedores são a primeira manifestação da peste, que os
lança para “girar sobre si mesmos e morrer perto dos humanos”. Ainda na
primeira parte, a referência voltará à “boca coberta de fungosidades” do
zelador Michael, primeira vítima da doença, cujas últimas palavras são “Os
ratos”.
Aproxima-se, assim, a experiência trágica dos cidadãos sob a
epidemia ao que é vivido por pessoas que tiveram os direitos e a vida
suprimidos pela guerra e consequente ocupação alemã (a “peste marrom”), o que
Camus reforçou em declarações na época. Deste contexto, a obra projeta-se a
outras possíveis ameaças políticas que persistem ainda hoje. O duplo sentido de
diversos termos utilizados ao longo do livro reforça o entendimento de que se
“o bacilo da peste não dorme nunca”, o totalitarismo se mantém à espreita. É
preciso, portanto, vigiar, dentre outras coisas, esse terrorismo irracional de
Estado, abordado pelo escritor também em O homem revoltado.
As palavras e as circunstâncias adquirem duplo sentido com
menção ao contexto histórico, como o aprisionamento, a existência de um mercado
paralelo, cadáveres sendo incinerados em fornos, a escolha de combatentes para
sacrificar a vida pela cidade. Ao mesmo tempo, a crítica a mecanismos de poder
e coerção social expõe estratégias discursivas que manipulam a população,
abstraindo problemas concretos e alimentando sua ignorância.
Logo de início, a peste e o discurso da prefeitura da cidade
são como abstrações que contribuem para o aumento do número de mortos. Como
escreveu Camus em outra ocasião, “Nomear mal um objeto é somar à infelicidade
deste mundo”. De início, demora-se para nomear a peste, as medidas da
prefeitura são tímidas, como se insistissem em sua ignorância. Posteriormente,
embora o flagelo deixe de ser abstração, os veículos de comunicação, como é o
caso da Agência Ransdoc e o Correio da Epidemia, dividem-se entre um falso
otimismo e a comunicação indiferente de dados estatísticos sobre as mortes. Não
é sem propósito que mais adiante no livro, Jean Tarrou, viajante que documenta
a peste em seus cadernos e se une às formações sanitárias para combatê-la, vai
afirmar que um dos problemas no mundo é a falta de uma “linguagem clara”.
Apesar de sua boa recepção quando da sua publicação, A peste
seria anos mais tarde objeto de crítica de Roland Barthes por não incluir o
materialismo dialético em sua analogia à ocupação alemã. Também foi criticada
por Jean-Paul Sartre, que, segundo Ronald Aronson, chega a dizer que Camus foi
um babaca (“quel con!”) ao expor uma peste que surge sem razões e desaparece
sem explicação, ignorando também condições históricas. Contudo, a crítica da
crônica à falta de linguagem clara também pode ser lida como uma denúncia do
discurso manipulador que oculta tais questões estruturais e históricas.
Trata-se de manter os olhos incansavelmente abertos, atentos à concorrência de
narrativas que se denominam como a verdade, mas que fogem do diálogo e
banalizam o sofrimento em prol de fins políticos.
Olhos que contemplam
Além de tal plano de fundo, Camus pontua a Barthes em carta
de 1955 que A peste é mais que uma “crônica da Resistência”. A obra também
provoca os olhos que já não veem o que os cerca, presos a uma forma indiferente
de perceber o cotidiano. A morte de Michel é apenas o começo de mudanças mais
profundas: “Se tudo tivesse ficado por aí, os hábitos, sem dúvida, teriam
vencido”, mas a revolução imposta na percepção das coisas atinge em cheio os
hábitos e interesses dos concidadãos.
O cenário pede para ser visto com novos olhos. Entre jogos
de luzes e sombras sobre o espaço da narrativa, seguimos passos cadenciados dos
oraneses, observamos a vida que pulsa e que passa. Nos primeiros meses de
peste, alguns estão dopados no próprio sofrimento, outros tentam seguir com
seus hábitos, outros ainda saem em busca de gozar a vida. De todo modo, todos
agora “se tornavam sensíveis às cores do céu e aos odores da terra…”. As ruas
estagnadas crepitam sob o sol durante o dia e à noite, são palco de passeios
solitários, mas também de festividades dos jovens, com eles, “Toda a angústia
que se pinta durante o dia nos rostos se dissolve então, no crepúsculo ardente
e poeirento, numa espécie de excitação desvairada, numa liberdade desajeitada
que inflama todo um povo”.
Mas comparada à nossa São Paulo, Orã também tem seu ritmo
intenso, repleta de gente interessada pelo comércio e preocupada em “fazer
negócios”. Faltam-lhe tempo, reflexão, e as pessoas são obrigadas a “amar sem
saber”. A epidemia, conforme avança, impõe esse tempo que falta às pessoas. Ela
dura de abril a fevereiro do ano seguinte e, no seu auge, torna a cidade “uma
sala de espera” de recolhimento e silêncio.
Ao mundo inchado de inovações do leitor de hoje, a peste
traz a espera e a paciência. Exilados geograficamente, agora todos os cidadãos
também vivem em suspensão: repetem os mesmos filmes, leem os mesmos dados
estatísticos no jornal, encaram a mesma necessidade de readquirir coragem a
cada dia que recomeça. Junto à ideia de um progresso linear da humanidade e à
nossa constante evolução rumo ao tão idealizado futuro melhor – herança de uma
tradição cristã que nos faz contar os anos à espera do retorno do salvador -,
essa situação nos impõe a repetição cíclica das coisas.
Constata-se, porém, que muitos têm dificuldade de olhar para
a própria repetição. Carecem de imaginação nessa “necrópole em que a peste, a
pedra e a noite teriam feito calar, enfim, todas as vozes”. Alguns tentam
apenas reviver os mesmos passeios que faziam com o amante ausente, outros
aprisionam-se na própria saudade. Os assuntos ficam escassos, falta-lhes aquela
tão valorizada fabulação descrita por Antonio Candido em “Direito à
literatura”, que reordena nossas experiências e garante nossa sanidade mental.
Conforme avançamos, há um momento de torpor no livro, um “longo sono”, quando
as pessoas “já não escolhiam nada” e “a peste suprimira os juízos de valor”.
Albert Camus
Foto Lennart Green/Albert Camus,
Vérité et
Légendes, Ed. du Chêne
Nesse sentido, as anotações do caderno de Tarrou sobre os
pormenores da Orã, recuperadas pelo narrador, pintam a narrativa com anedotas.
Inspirado em grande parte por Stendhal e pelas histórias de sua juventude na
Argélia, Camus insere na crônica casos como o de um idoso que todos os dias sai
à janela para atrair gatos e depois escarrar sobre eles; de um senhor asmático
que conta as horas transferindo ervilhas de uma panela à outra; e de um
ex-jogador de futebol espanhol que, nostálgico das partidas suspensas, chuta
pedrinhas para fazer gols em bueiros de ruas desertas.
O escritor faz de Tarrou o “historiador do que não tem
história”. Sua vantagem é trazer para o texto o olhar de um viajante, que vê
algo novo no que é rotineiro para quem sempre viveu no local. Esse flâneur que
ouve conversas nos bondes é uma fonte de olhar poético e criativo na narrativa.
Mas não é o único a alimentá-la com histórias de vida. O doutor Rieux, o
contrabandista Cottard, o padre Paneloux, o servidor público Grand e o
jornalista Rambert reagem ao risco da morte como podem. Alguns encabeçam a luta
contra a imediata pena de morte coletiva, outros ainda tentam perseguir
objetivos pessoais, como Rambert e sua tentativa de fuga da cidade para reencontrar
a esposa na França até desistir, enfim, e se unir às formações sanitárias.
Desse modo, nosso olhar que se detém em contemplação percebe
o valor da natureza que o cerca, das pequenas felicidades rotineiras e da luta
individual contra o sofrimento. Se por um lado a monótona Orã é repleta de
pessoas ocultas no anonimato da vida comum, essas mesmas pessoas dão prova de
que ser apenas humano em um mundo absurdo às vezes já pode significar muito.
Olhar e revolta
A epidemia nos recorda que, como seres humanos,
compartilhamos de uma condição comum. Desde a parte dois do livro, a peste
torna-se “um problema comum a todos nós”, e os sentimentos individuais passam
progressivamente a ser de todos os seus prisioneiros.
Os contornos de cada um, suas grandes ambições e vaidades,
diluem-se no exílio. Agora a cidade está repleta de “sombras errantes”. Algumas
delas recorrem ao passado e ao sentimento de falta do ser amado, de
arrependimento. Furtando-se à tragédia coletiva, tentam se revestir com um
invólucro de uma paixão pessoal, assim, “o egoísmo do amor preservava-os”. Mas
a esse torpor contrapõe-se com mais força certa objetividade no combate ao
cruel destino.
“Já não havia destinos individuais, mas uma história
coletiva que era a peste e sentimentos compartilhados por todos”. Em situação
de calamidade pública, quando o aporte financeiro já não basta, voltamos a nos
perguntar qual lugar ocupamos na sociedade e que contribuição podemos lhe dar.
E seja por instinto de sobrevivência, seja por solidariedade, as personagens
que se percebem como pertencentes à cidade cumprem diferentes papéis na luta.
Em um estágio avançado de epidemia, com o aumento do desemprego, “a miséria
mostra-se mais forte que o medo” e as formações sanitárias ganham reforço.
O burocrata Grand, por exemplo, poderia facilmente ser
apenas um Gregor Samsa de A metamorfose. A única diferença é que, além de
servidor de uma repartição, ele tem o desejo de saber se expressar e, para
isso, repete o mesmo início de um romance todas as noites para decidir ao final
que a questão era tirar os adjetivos em excesso. Ele “só tinha um pouco de
bondade no coração e um ideal aparentemente ridículo”, mas faz a diferença por
ficar duas horas a mais na repartição e contribuir com seus conhecimentos à
contabilização da peste. Rambert, que estava de passagem em Orã e acabou preso
por conta da epidemia, decide no último momento abandonar sua tentativa de fuga
e contribuir na luta contra a peste, pois “tem vergonha de ser feliz sozinho e
sente que pertence à cidade”.
O tom sóbrio e frio do narrador ao expor a decisão de tais
personagens não os eleva. Pelo contrário, procura dar “ao heroísmo o lugar
secundário que lhe cabe”. Desmistifica, com isso, a função do herói individual
como centro das narrativas. O narrador lamenta não poder narrar um grande
feito, mas a peste que os atinge, diferentemente dos vilões clássicos, é um
inimigo “monótono”. O próprio Rieux em seu trabalho cotidiano de tratar os
doentes da peste não vê nisso algo a se exaltar: “Estou nas trevas e tento ver
claro. Há muito que deixei de achar isso original”.
A tragédia que a epidemia ilumina já é nossa constante luta
contra a morte de cada dia. Com esse entendimento, o leitor direciona os olhos,
então, ao plano metafísico da questão. Camus escreveu em seus cadernos enquanto
redigia A peste: “O Estrangeiro descreve a nudez do homem diante do absurdo. A
peste, a equivalência profunda dos pontos de vista individuais diante do mesmo
absurdo”. Assim, se o flagelo faz parte dos desígnios divinos, como quer o
padre Paneloux em seus sermões, o doutor Rieux, por sua vez, “recusa-se até a
morte amar esta criação em que as crianças são torturadas”. Como palco dessa
luta entre homem e deus, os momentos de morte de uma criança, o filho do juiz
Othon, leva a fé cristã ao seu limite em uma das cenas mais intensas da
crônica.
A condenação à morte é condição natural da vida, mas nos
esquecemos disso. Tarrou também nos recorda. Filho de um procurador-geral
responsável por enviar criminosos à guilhotina, ele guardava com horror a
imagem do réu condenado diante da própria morte iminente. Personagem que
verbaliza a total oposição de Camus à pena de morte – esse assassinato cometido
pelo Estado -, ele luta contra a epidemia, dando o exemplo de uma reação
positiva à absurdidade da vida, em outras palavras, ele se revolta.
Assim também Rieux: “Há horas, nesta cidade, em que nada
sinto senão a minha revolta”. Para ele, essa revolta consiste em fazer o seu
trabalho e a jamais se habituar ao escândalo do sofrimento humano. Antes de se
conectar com algo que transcende à vida, ele opta por reforçar o elo solidário
com o mundo a sua volta e com cada pessoa que padece. Uma das cenas mais
simbólicas desse elo é, ao final da quarta parte, quando Rieux e Tarrou decidem
suspender a luta contra o flagelo para tomarem um banho de mar, algo proibido
no atual estado de sítio. Ele experimenta, então, “uma estranha felicidade”.
A felicidade, no entanto, “nada esquecia”. Os dois amigos
cedem à alegria da amizade e ao contato com a natureza, mas guardam a lucidez
de que sempre é preciso recomeçar.
Albert Camus no Festival de Arte Dramática de Angers
Foto
Bettman/CORBIS
A medida das coisas entre sombras e luz
Assim, ler A peste é ler a história de uma epidemia e das
grandes lutas coletivas contra o sofrimento, seja causado por conflitos
políticos, seja meramente arbitrário. É passar do literal ao simbólico, da
crítica realista à reflexão metafísica. É andar por ruas de sombra e ruas de
luz, como diante de quadros em chiaroscuro. No lusco-fusco em que tateamos o
caminho, as palavras persistem como nosso guia, assim como a linguagem que
nomeia as coisas e ilumina o mundo aos olhos de cada um.
Somos todos empesteados antes de conhecer a peste de fato.
Assim como ela, também temos a “precisão e regularidade de um bom funcionário”.
Em nosso dia a dia, tendemos igualmente a sacrificar “tudo à eficácia”. Então
com a leitura, e com a experiência da atual pandemia, atravessamos seu “reino
imóvel”, oscilamos entre medo e revolta.
Mas a Orã sitiada é como uma cidade triste que nos
compreende e nos acolhe. Povoada de mortes, a crônica segue adiante. A cada
novo capítulo, demonstra que é preciso recomeçar, pois há uma obstinação de
viver que nos sustenta em nossa condição trágica. Na base da revolta, há o amor
pelos que nos cercam. Preparamo-nos para combater, mas não nos esquecemos que
um “mundo sem amor era como um mundo morto e que chega sempre uma hora em que
nos cansamos das prisões, do trabalho e da coragem, para reclamar o rosto de um
ser e o coração maravilhoso de ternura”. As personagens Rieux, Rambert, Tarrou
e Grand cedem à ternura, ao amor, à própria sensibilidade. Com eles, cede a
peste.
Ao final, deixamos o livro talvez como um prisioneiro deixa
sua prisão, um monge deixa seu mosteiro – olhamos para fora com mais sabedoria,
como “um calor de vida e uma imagem de morte, era isso o conhecimento”. É
possível ser feliz porque existe o amor entre os seres e porque “há nos homens
mais coisas a admirar que coisas a desprezar”. Mas é preciso preservar a
memória. Ela impede que a felicidade ceda à ingenuidade e que ódios futuros nos
tornem niilistas. Entre memória e felicidade habita a justa medida do olhar que
Camus buscou ao longo da vida. Não é à toa que, após o ciclo da revolta, viria
em sua obra o ciclo do amor – mas com o mito de Nêmesis, deusa grega da justa
medida.
Se as narrativas do poder nos iludem com mentiras sobre quem
somos e o que estamos atravessando, a literatura lhes contrapõe ficções que
reordenam o mundo, oferecem novas camadas ao olhar, tornando-o mais crítico,
mas também mais sensível. Ao colocar-nos em lugares variados de contemplação,
ela também nos devolve vias para o recomeço das coisas. Em um mundo repleto de
fake news, de declarações proferidas e depois denegadas, a representação mítica
de um acontecimento tem o poder de expandir nossa reflexão social e ontológica.
Também convida o olhar a enxergar o elo de cada um com a humanidade e a sua
história.
Raphael Luiz de Araújo é doutor em letras pela USP,
professor de língua portuguesa e literatura, e tradutor de Os primeiros
cadernos, de Camus
Texto e imagens reproduzidos do site: revistacult.uol.com.br
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