Publicado originalmente no site DISPARADA, em 19 de abril de
2021
98 anos de Lygia Fagundes Telles: ‘o escritor no Brasil fica
bom depois da morte’
Por Amanda Salgado *
Lygia Fagundes Telles é a escritora brasileira de todos os
tempos.
Hoje é 19 de abril e Lygia Fagundes Telles faz 98 anos. Fica
na atualidade sua paixão pela palavra que fala e escreve a língua portuguesa
com a maestria que somente ela ousa devanear. Acompanhada de uma geração de
sonhadores do Brasil pela arte, “arriscou-se na profissão da vida”, como diz na
entrevista do Roda Viva de 1996, ao lado de Mário de Andrade, Hilda Hilst,
Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Emílio
Sales Gomes, Tom Jobim, Jorge Amado e outros “lutadores de palavras” que aqui
se encontraram.
Não há pequenezas no engajamento natural de seu viver,
Lygia. Toda palavra dita, escrita, foi pensada e articulada para falar com as
pessoas. Ainda quando elas estavam cada vez mais difíceis, naquela época em que
fala no Roda Viva. Nos tempos em que disse estarem as pessoas cada vez mais
embrulhadas. E foram as palavras de Lygia, muito bem eternizadas em suas obras
primas, que “desembrulharam” o pensamento e as esperanças de aos poucos as
pessoas serem “desembrulhadas”. O processo de desfazimento fez-se de seu
próprio desfazer: “essa vontade de pegar a palavra e desembrulhar essa palavra.
Como o escritor faz com as suas personagens. E como eu mesma faço comigo mesma.
Tentando desembrulhar as minhas personagens, de um certo modo, eu estou me
desembrulhando”.
Desembrulhando o brasileiro, Lygia acabou desembrulhando o
mundo com suas personagens e seu êxtase do falar a palavra. Ignácio de Loyola
lembra, durante a entrevista, quando estavam em Colônia, na Alemanha. Lygia
dava uma palestra com tradução simultânea. E como acontece com Lygia
geralmente, ela começou a delirar. “Acontece que o sistema de som pifou. Porque
também na Alemanha as coisas não são perfeitas. E os alemães ficaram te
ouvindo. Você transbordava e cada vez mais excitada, cada vez mais cheia de
imaginação. Até que te avisaram que o sistema de som tinha pifado. Você olhou e
os alemães pediram que você continuasse. Você continuou a falar em português,
eles não entendiam nada e no final levantarem a aplaudiram de pé”. A explicação
era sua paixão pela palavra que, mais do que compreendida, era sentida e
atravessou fronteiras. Lygia desembrulhou quem quer que fosse que a ouvisse ou
lesse.
Dizendo não ter talento para ter sido política, também fala
que dentro de si, em sua natureza mais profunda, ficaram as lições sobre as
desigualdades sociais. Por isso que em 1996 dizia ver seu país, que amava
tanto, naquela situação tão dura e terrível, justamente com sua vontade que era
“mínima, uma palavra”, de ajudar, colaborar, em sua posição de escritora. E de
sua solidão da escrita soube identificar seu lugar no mundo e a potencialidade
do escritor e sua relação com a política e com seu país: “o bom escritor está
naturalmente engajado na política. Esta paixão pela política, esta paixão pela
justiça, esta paixão pela liberdade, naturalmente, esta paixão dentro de nós, e
que é tão forte, ela vai para as personagens, para o texto. Nós somos
escritores comprometidos sim com a política, no sentido da palavra”.
A atualidade da forma com que Lygia enxergava o Brasil em 1996 é, em parte, triste. As pessoas continuam embrulhadas por aqui. E a vida continua, mais do que nunca, um artigo de luxo no Brasil. O artista brasileiro continua desvalorizado em vida e, como disse, “o escritor no Brasil (continua) ficando bom depois da morte”, sendo em vida esquecido ou pouco lido. Mas que sorte termos sua vida em terras tupiniquins. Sorte temos das outras formas como enxergou o Brasil e a arte, cujas palavras tiveram a coragem de falar e chegar em lugares que hoje parecem desvanecer.
No otimismo que nos resta, que sejam imortais então estas
palavras de Lygia sobre o Brasil e sua resiliente arte, exemplificada no maior
momento de êxtase de sua paixão pela palavra durante a esplêndida entrevista,
que dava na lucidez de seus 73 anos. Respondendo sobre a adaptação de seu livro
As Meninas para o cinema, falou: “não existe condescendência. Nós temos que
compreender que nós estamos em um país tão maravilhoso e tão miserável. Nós
temos que compreender que nós não temos esta força econômica. Nós somos aqui
seres lutando para mostrar a nossa face. Que é uma face dolorida, difícil. Mas
que é a face que nós temos. Então essa vontade de luta que existe em todo o
leque das artes no Brasil, de mostrar essa face nossa, com todas as
fragilidades, sim. Mas essa vontade de não ser colonizado. De não mostrar o
cinema colonizado, e nós nunca fomos tão colonizados como agora, meu querido,
você sabe disso. Essa vontade heroica de lutar para mostrar o melhor do cinema.
E por isso que Paulo Emílio Sales Gomes dizia: ‘eu perdi tempo vendo o cinema
do mundo, eu devia estar no meu país’. Por isso que quando ele voltou para cá
ele se entregou completamente ao Brasil, país mestiço, com tantas deficiências
e, repito, tão miserável e tão maravilhoso”.
Enquanto Lygia fala, a bancada do Roda Viva é capturada por seu êxtase. Ouvir e ler Lygia Fagundes Teles continua me capturando e me desembrulhando. Como eu disse: ficou na atualidade sua paixão. E ficou também a esperança de ver o Brasil nem tão miserável, mas somente tão maravilhoso.
Aproveito para deixar aqui, além da esplêndida entrevista, o acervo de cartas de Lygia mantido no acervo do Instituto Moreira Salles:
> https://www.correioims.com.br/perfil/lygia-fagundes-telles/
* Amanda Salgado - Advogada, mestranda em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, editora do Portal Disparada e fotógrafa nas horas vagas.
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