Foto: Felipe Redondo.
“A morte do meu pai é algo que não acaba nunca", diz Marcelo Rubens Paiva.
A cara de garoto ainda resiste. Mas o escritor, aos 56 anos,
desiste dos excessos, enxerga o passado nos olhos do filho de um ano e celebra
a lucidez da “velhice”.
Por Marcos Carneiro.
“Sou um homem geriátrico. Se pudesse, continuava fumando
cigarro, maconha e bebendo uísque todos os dias.”
A frase espanta, já que sai de um homem de muitos cabelos,
poucos deles grisalhos, camiseta (dos Beatles) e calça folgadas e dono de um
apartamento em que autores pops e recentes, como David Foster Wallace, dividem
espaço com os gatos Fábio e Hugo (“adoro nome de gente em bicho”), que rasgam
os cantos do sofá amarelo. Mas Marcelo Rubens Paiva, ícone da geração que nos
anos 1980 deu status de best-seller ao seu primeiro livro, Feliz Ano Velho, não
escapa da razão: os planos médicos já classificam os maiores de 49 anos em
outro patamar. Às favas com as evoluções intelectual e comportamental dos
últimos 25 anos: na letra fria da Agência Nacional de Saúde, ele é velho. A
farta cabeleira e os parcos fios brancos não contam. “Me sinto até um
aposentado.”
Mentira, claro. Marcelo é uma máquina de produção. De
celular na mão, roda a sala povoada de fotografias de gente comum, de cubanos
às aldeias indígenas. Não para. É um workaholic. Acaba de lançar um livro,
Ainda Estou Aqui. Escreve e dirige peças, além da coluna e do blog no jornal O
Estado de S. Paulo. Elabora roteiros para filmes. Vai assinar uma série para o
canal Multishow. Cuida do filho Joaquim, de 1 ano. É o responsável legal pela
mãe, Eunice, 86 anos, vítima de mal de Alzheimer, interditada judicialmente desde
2008 e figura central de seu último romance – autobiográfico como o primeiro.
Se os dois romances, o primeiro e o último, falam de dor, o
escritor/dramaturgo/jornalista se esquiva dela para falar da vida. Não há
autocomiseração no homem que, aos 19 anos, descobriu-se tetraplégico depois do
salto de uma ponte de cabeça em uma pedra. Ele ri de suas bobagens e de seus
foras, muitos deles quando estava bêbado ou com o estado da mente alterado por
um baseado. Diz ter descoberto o prazer da lucidez em uma festa em que não
havia maconha. Justo ele, que havia fumado o primeiro cigarro de artista aos 14
anos – chapado, conheceu, ainda adolescente, o ex-presidente Lula, na casa da
família, quando o então sindicalista visitou a mãe nas conversas que culminaram
na anistia e na redemocratização. Já usou cocaína (“entre os anos 1970 e 1980,
era uma droga legal. Mas depois ficou baixo-astral. Não uso desde 1985”) e
ácido, cuja experiência resultou numa bad trip em pleno Réveillon de Copacabana
(“parei do lado de um ambulante com um isopor. Senti uma confiança nele”).
Ele, no entanto, não
se descreve como um velho maconheiro compulsório. “Tinha época que fumava tanta
maconha que chegava de manhã listando as bobagens que eu tinha falado, as
coisas horríveis que fiz, as caronas que dei sem saber para quem. Já amanheci em
lugares que não sabia onde eram. Já tive que perguntar para os porteiros se
eles sabiam com quem eu cheguei. Me lembro que fui sóbrio a uma festa. E fiquei
completamente apaixonado pelo estado da serenidade e o cérebro conectado com o
que estava acontecendo. Eu falei: ‘Nossa, que barato!’. Comecei a achar a
lucidez a melhor droga.”
E parou um pouco. Não só com o baseado. Parou de beber. Há
três anos. “Eu ficava bêbado três vezes por semana. Tomava uísque, cerveja,
vinho. Uísque, cerveja, vinho… [ri]. Estava com glicemia alta, fraqueza nos
braços.” Parou de fumar. E parou (um pouco) com a intensidade extrema do viver.
“Priorizei uma vida mais caseira, mais desorganizada e caótica – porque o filho
traz caos para casa.” Joaquim, diz, é a pessoa mais parecida em sua família com
seu pai. O cabelo é loiro; os olhos, claros. O pai – o ex-deputado federal pelo
velho PTB Rubens Paiva, desaparecido na ditadura militar, em 1971, e cuja
certidão de óbito só foi lavrada em 1996, sem que a família pudesse enterrá-lo
– voltou então com força à sua memória. Está no rosto de Joaquim, o menino que
percorre a sala com o celular de Marcelo nas mãos, tocando ininterruptamente Do
I Wanna Know?, do Arctic Monkeys, a atual favorita do garoto. Será que ele
sabe?
“A morte do meu pai é algo que não acaba nunca”, diz o
filho, que ainda guarda e usa a gravata herdada do guarda-roupa do velho.
Enquanto Joaquim balbuciava os primeiros sons, sentava já sem a ajuda dos
adultos e engatinhava pelo apartamento em um condomínio de luxo entre os bairros
de Vila Madalena e Sumaré, na zona oeste de São Paulo, a Comissão Nacional da
Verdade determinava que a investigação sobre o desaparecimento e morte de
Rubens Paiva continuasse. A morte do ex-deputado, de fato, está longe de ser
encerrada. “O Ainda Estou Aqui foi ver meu filho, que parecia ter nascido para
trazer alguns elementos do meu pai de volta. Quando minha mulher estava no
parto, com anestesia peridural, com dificuldade de contração final, a médica
fez um ritual quase místico: ‘Vamos pensar no que queremos para essa criança’.
Imediatamente, pensei que ela viesse para representar bem o nome do meu pai. E
ele nasceu loiro e de olho azul, como meu pai, que era o único da família
assim. É a continuação de uma história interrompida bruscamente.”
Joaquim, filho de
Marcelo com a filósofa Silvia Feola, 31 anos, é um capítulo que o escritor
jamais pensava em escrever há uma década. Na época, vinculava filhos a desejos
femininos. O menino, no entanto, foi a implosão que o autor precisava – uma
rotina repartida com alguém que depende totalmente de você. Os brinquedos estão
pela sala. Antes de a reportagem chegar, bolas e cacarecos eram recolhidos do
chão.
Filhos aos 56 anos são também parte de um recorte geracional.
Joaquim veio ao mundo pouco tempo depois de amigos da mesma idade
experimentarem a paternidade pela primeira vez. Marcelo agiu inspirado no
diretor teatral Raul Barretto, fundador do Espaço Parlapatões, em São Paulo, e
no jornalista Otávio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo. “É o
movimento de homens que não priorizaram a vida paterna. São boêmios, um pouco
até egocêntricos. Artistas, narcisistas. Fui casado por nove anos com uma
psicóloga que não quis ter filho. Ela era de uma geração de mulheres que optou
por trabalhar, por ser empreendedora. Tenho quatro irmãs e duas não tiveram
filho, mesmo sendo casadas. É um movimento comum da minha geração.”
Mãe da mãe.
O menino não é o único que inspira os cuidados do autor. No
mesmo conjunto de prédios que o seu, no bloco ao lado, mora Maria Eunice
Beyrodt de Paiva. Aos 86 anos, a matriarca dos Paiva não reconhece mais os
filhos, confunde pessoas que já morreram com as vivas e inverte a todo tempo o
gênero de Joaquim. Por vezes é ele, em outras, ela.
Eunice sofre de Alzheimer e a família optou por interditá-la
judicialmente em 2008, quando ainda estava lúcida. Marcelo tornou-se o
responsável legal pela mãe, mas é a irmã Vera quem a leva para executar as
questões simples do dia a dia, como cuidar do cabelo, fazer as unhas e ir ao
dentista. A família se reúne semanalmente no restaurante ao lado da piscina no
conjunto de prédios da zona oeste paulistana. Joaquim é quem mais a vê, todos
os dias.
“Ainda Estou Aqui é uma frase que minha mãe falou de
verdade, em seu grau avançado de Alzheimer. Quando ela falou, me deu um susto.
Era o cérebro dela avisando: ‘Estou incapaz, mas não morta’. Existe um dilema
dos familiares de falarem sempre da pessoa no passado. Minha mãe, apesar de não
ter nenhuma memória, tem uma dignidade, uma postura no olhar, muito forte. Ela
senta na cadeira de rodas com a perninha cruzada, com um olhar sábio, um
colarzinho de pérolas. Não tem uma postura de doentinha.”
O livro, que cruza as histórias de Marcelo, Eunice e
Joaquim, foi também um jeito de ele contar a experiência de uma família da
classe média alta paulistana alterada por um golpe de Estado, como o de 1964.
Ele olha para o passado para enxergar heróis diferentes dos que a esquerda e a
direita no país escolheram. Para o escritor, seus pais não são apenas heróis
domésticos, mas também de uma resistência civil que repudiou os 21 anos de
regime militar. “Muitas pessoas acham que a luta contra a ditadura foi
executada pelas forças armadas da esquerda. Não foi. Eles queriam lutar contra
o sistema capitalista, da influência americana sobre o continente. O que o Zé
Dirceu fez para lutar contra a ditadura, o que a Dilma fez? Nada. Foi presa,
torturadaça e passou a ditadura presa. Agora, quem lutou contra a ditadura? Foi
o Pasquim, foram os editores Ênio da Silveira e Caio Gracco, o Plínio Marcos, a
Igreja Católica, o dom Paulo Evaristo Arns, a ABI, a Folha de S.Paulo, o
Estadão, o Jornal do Brasil, a VEJA… O Caetano, o Gil, o Oficina, o
[Gianfrancesco] Guarnieri, o [Vladimir] Herzog. A minha mãe. Essas pessoas
combateram a ditadura – e não a luta armada, que até atrapalhou um pouco. No
primeiro Ato Institucional da ditadura, entre as pessoas cassadas não havia um
comunista! É uma deturpação absurda do que foi a ditadura, um desconhecimento
dos fatos.”
Uma “deturpação” que já causou incidentes, como o com o
vocalista do Ultraje a Rigor, Roger Moreira. Em uma guerra pelo Twitter, o
roqueiro disse que sua família não sofreu com o regime porque nunca havia
“feito merda”. Era uma referência à postura política de Rubens Paiva – que
nunca foi comunista e jamais defendeu a luta armada. “E são figuras que foram
importantíssimas na luta contra a ditadura. A gente começou a ficar amigo nesses
eventos políticos, nas manifestações. De repente, houve uma mudança de parte
delas. Eu não entendi e nem os fãs entendem. Tem aquele ditado de ser
incendiário na juventude e bombeiro na velhice. Eles lançaram músicas [no
passado] que contradizem o que dizem hoje.”
O bode com o momento político passa quando fala de amor.
Marcelo Rubens Paiva gosta de namorar. Está casado desde o início da década e
rejeita quando lembram de sua fama de pegador. “Todo mundo lembra do Feliz Ano
Velho e diz que sou um galinha. Mas eu só falo de três meninas! Fui galinha
quando estava solteiro, mas prefiro namorar”, conta o escritor.
Em meio ao caos das pequenas e grandes coisas com que
precisava lidar, Marcelo relaxa. Não mais com as drogas, nem mesmo o uísque.
Quer saber de mais livros, da paixão imediata pelos ternos de Ricardo Almeida
(“sou o ‘homem-moletom’, mas fico lindo de terno e gravata”), do filho e da
mulher. O tesão, aos 56 anos, está mais apurado do que nunca, afirma. Nada mal
para um homem velho feliz.
Texto e imagem reproduzidos do site: vip.abril.com.br
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