Publicado originalmente no site MultiRio, em 19 de março de 2012.
Liberdade linguística, miscigenação e construção
carnavalizada do Brasil
Por Márcia Pimentel
Jorge Amado faz parte de uma geração de escritores que se
serviu dos caminhos abertos pelos modernistas da Semana de 1922 e inovou o
romance brasileiro com uma prosa marcada pela crítica social e linguagem
regionalista. Embora a crítica literária identifique o grupo como a geração que
inaugurou o romance social no Brasil – muitas vezes chamado de romance
nordestino pelo fato de a maioria dos autores ser natural do Nordeste -, não
havia entre os escritores o sentido de unidade estética programática que marcou
os grupos modernistas da fase anterior. Mas se os nordestinos despontados na
década de 1930, ainda que sem unidade estética, inovaram a Literatura
Brasileira com seus romances sociais, teria Jorge Amado alguma contribuição
específica para as nossas letras?
Para a presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL),
Ana Maria Machado, a principal inovação de Amado foi levar para as páginas
literárias a fala popular do brasileiro e as centenas de personagens marginais,
como prostitutas e meninos de rua. “Hoje, isso ficou tão comum que nem se nota
o tamanho da revolução que representou quando ele o fez”, destacou a escritora
em uma entrevista ao jornal Balaio de Notícias. Durante muito tempo, porém, no
meio acadêmico e na crítica literária, prevaleceu um enfoque oposto: o de que a
obra amadiana apresentava descaso com os padrões da língua, além de ser antiga
e atrasada, por ter um tom picaresco que, supostamente, seria mais adequado ao
romantismo indianista do século XIX.
Foi assim que, por exemplo, o inglês David Brookshaw,
professor de Estudos Luso-brasileiros da Universidade de Bristol, classificou o
livro Jubiabá (1935). O negro Antonio Balduíno, personagem principal do
romance, seria, segundo ele, o estereótipo do bom escravo dos tempos coloniais,
visão com a qual Eduardo de Assis Duarte, professor da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), não concorda. Para este, Balduíno,
além de ser o primeiro herói negro de perfil épico do romance brasileiro, só é
apresentado com inocência, força física e sensualismo extremado, no início da
história, para fazer contraponto ao novo homem que surge, no final, com a greve
e a consciência de classe.
Em seu artigo Jorge Amado: uma releitura, Ana Maria Machado
credita boa parte da má vontade com a obra do escritor baiano aos “feudos
portugueses que fixaram raízes nas instituições culturais lusitanas durante o
longo período salazarista”, inclusive nos departamentos de Língua Portuguesa de
diversas universidades europeias. Esses “feudos” atacavam a “sintaxe duvidosa”
e a “frouxidão linguística” do texto amadiano, nada fiel aos cânones
linguísticos da academia lusitana. A presidente da ABL, porém, ironiza a má
vontade com o escritor baiano, já que a teoria em prol da liberdade linguística
era fortemente aplaudida e elogiada pela academia e pela crítica literária,
desde os primórdios do Movimento Modernista. “O que Amado fez foi colocar em
prática o que os modernistas buscavam sem conseguir até então”, dispara ela.
Amizades e favores
Para o antropólogo Roberto Da Matta, a principal
contribuição de Jorge Amado às letras brasileiras reside nos “temas não
oficiais da sociedade brasileira” que ele colocou em pauta nos seus romances da
fase pós-Gabriela. Esses temas seriam assentados na teia de elos pessoais e nas
capa_dona_flor_legendarelações de favores que atravessam as relações entre
semelhantes e opostos, ricos e pobres. “Não se trata mais de uma luta dualística
entre oprimidos e opressores, mas de um drama que, não obstante a inclusão da
exploração e do poder mais nu e cru, pretende tratar das relações e
manifestações deste poder com ele mesmo. E mais, discutir as formas sociais (ou
culturais) que fazem esse poder ser obedecido”, avalia Da Matta em seu livro A
casa e a rua.
Para tratar do universo fundado nas amizades e nas relações
pessoais e de favores, fora da moralidade oficial – com coronéis se
relacionando com prostitutas e malandros, com recatadas viúvas acatando
conscientemente a convivência com dois maridos etc. –, Jorge Amado utilizou,
segundo o antropólogo, a estratégia da carnavalização. Para sustentar essa
teoria, Da Matta recorre ao filósofo russo Mikhail Bakhtin, que afirma que as
manifestações carnavalescas estão assentadas na liberdade de poder inverter os
costumes e a moral do status quo, o que torna possível trocar o sacro pelo
profano, o velho pelo novo, a morte pela vida etc. “Carnavalizar é relacionar
pessoas, categorias e relações sociais que normalmente estariam soterradas sob
o peso da moralidade sustentada pelo Estado”, diz o antropólogo.
É a carnavalização que dá aos heróis da fase pós-Gabriela a
característica da vida dupla. É ela que também permite que malandros como
Vadinho, de Dona Flor e seus dois maridos, se relacionem com as camadas mais
altas e estabelecidas da sociedade, da mesma forma que Tiririca, que pertence
aos estratos de cima, se relaciona fortemente com os que estão abaixo através
de sua famosa festa anual, realizada para pagar dívida com um orixá. Para Da
Matta é essa visão carnavalizada que permite que Amado revele a face oculta e
a-histórica da sociedade, para além dos diagnósticos socioeconômicos
tradicionais.
Ícone do século XX
Para o professor da UFMG Eduardo de Assis Duarte, Jorge
Amado “faz parte de um restrito grupo de escritores que se emaranharam
intensamente nas pulsões históricas do século XX”. Em sua visão, a obra
amadiana é composta por grandes narrativas que se entrelaçam com a trajetória
do socialismo e a história do país e contam a vida do povo numa ótica voltada
para a construção da identidade nacional – a Bahia transformada em metonímia do
Brasil.
Ele lembra que a postura amadiana vinculada à construção da
identidade cultural se transforma com o tempo. O paradigma ideológico da luta
de classes passa a ceder cada vez mais espaço para as relações entre homens e
mulheres, a miscigenação racial, a tolerância étnica e o hibridismo cultural,
numa postulação próxima daquela defendida por Gilberto Freyre. As questões
étnicas, aliás, estão presentes desde as primeiras obras de Amado, embora a
luta de classes ainda fosse, nessa época, o cerne das questões humanas. Numa
entrevista que concedeu a sua tradutora francesa Alice Raillard, Jorge Amado disse,
certa vez: “Em Jubiabá, (...) Balduíno compreende que o problema de raça não é
a causa, mas sim consequência do problema de classe. (...) Eu realmente fico
feliz por Jubiabá mostrar isto e não o caminho estreito e fechado da separação
de raças, da negação da nossa realidade e da própria experiência humanista, que
é a mistura de raças”.
Até o fim de sua vida, Amado defendeu a bandeira da
miscigenação e hibridação cultural. Essa postura lhe rendeu inúmeras críticas
da esquerda que, aliás, condenou não só os rumos de sua ficção, mas também sua
trajetória política, que flutuou entre o culto a Stalin e a amizade com José
Sarney e Antônio Carlos Magalhães. Talvez, a visão carnavalizada da sociedade,
analisada por Da Matta, explique o fato de Amado ter feito amigos com
trajetórias políticas tão distintas daquelas que pregou até meados dos anos
1950.
Em relação a todas as controvérsias que cercam a figura do
escritor baiano, Duarte, em um artigo que escreveu em 2001, dizia esperar que a
morte de Jorge Amado, ocorrida naquele ano, não mais obscurecesse o trabalho do
artista, nem conduzisse mais o julgamento de sua obra por critérios que
extrapolassem seu projeto literário. Mais de dez anos depois, resta-nos saber
qual será o tom da academia neste ano de comemoração do centenário de
nascimento do escritor que encantou milhões de leitores no Brasil e no mundo.
Texto e imagens reproduzidos do site: multirio.rj.gov.br
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