Publicado originalmente no site MultiRio, em 19 Março 2012.
Antes de ‘Gabriela’: o romance proletário
Por Márcia Pimentel
Antes e depois de Gabriela, cravo e canela. É
assim que os estudiosos da obra de Jorge Amado costumam dividir a produção
literária do escritor baiano. A divisão coincide com o momento em que ele
abandona a militância do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1956, ano em
que, no mundo inteiro, há uma debandada geral de intelectuais dos quadros do
comunismo, por conta da leitura dos crimes de Josef Stalin no 20º Congresso do
Partido Comunista Soviético. O romance Gabriela, publicado no Brasil em 1958, é
visto como a obra em que ele rompe com os cânones da estética oficial
stalinista: o realismo socialista.
A fase amadiana dos romances proletários se inicia em 1933,
um ano após sua filiação ao PCB, com a publicação de seu segundo livro, Cacau,
no qual narra a ganância e a brutalidade impiedosa dos coronéis do cacau, que
faziam fortuna à custa dos miseráveis. Sergipano, personagem principal do
romance, passa por uma longa trajetória de pobreza e revolta contra a
exploração até terminar como grande herói comunista. Amado parece, dessa forma,
alinhar-se com o realismo socialista antes mesmo de este ter-se tornado a
estética oficial do partido soviético.
Em sua tese de doutorado sobre Jorge Amado e militância
política, Júlia Monnerat Barbosa atenta para o fato de que alguns protagonistas
de outros livros publicados depois de Cacau – como Jubiabá (1935) e Capitães da
areia (1937) – traçam o mesmo roteiro épico de Sergipano: “infância pobre,
períodos de privações, tentativas de superação de uma realidade dura e
miserável de forma individual, fracasso, e, finalmente, a percepção de que
apenas a via coletiva de organização da classe trabalhadora pode oferecer a
libertação, terminando o protagonista como grande líder proletário”.
Efervescência cultural comunista
A fim de promover uma “cultura proletária” e fazer frente à
“cultura burguesa”, os partidos comunistas estruturaram, durante os anos 1930,
em diversos países, inclusive o Brasil, redes culturais – com jornais,
revistas, editoras e entidades – que atraíam intelectuais, jornalistas,
artistas, escritores, músicos e estudantes de todo o mundo. Em seu
stalin_4_1_legendalivro Descaminhos da revolução brasileira, Ricardo da Gama
Rosa Costa avalia o impacto dessa política cultural do PC em nosso país: “A
rede cultural do PCB, complementada no intercâmbio com os aparelhos do
movimento comunista internacional, funcionava como um lugar cativante e
delineador de carreiras culturais. A dimensão internacional de Jorge Amado
parece encontrar aqui uma de suas fontes de energia”.
Os esforços culturais do PC vieram acompanhados de
direcionamentos estéticos. O realismo socialista foi anunciado como a estética
oficial do Zhdanov_2partido para a literatura e as artes em setembro de 1934,
durante o I Congresso de Escritores Soviéticos. O anúncio foi feito por Andrei
Zdanov, comissário de Cultura indicado por Stalin. Conforme as teses por ele
apresentadas, as artes deveriam fazer uma descrição realista da sociedade e
enaltecer os heróis proletários. Ainda segundo o discurso proferido pelo
comissário, todo escritor deveria ser um “engenheiro de almas”, capaz de moldar
mentes socialistas e mobilizar “os trabalhadores e os oprimidos para a luta e
aniquilação definitiva da exploração e do jugo da escravidão assalariada”.
Em meio a essa política cultural do PC – que se torna bem
mais rígida após o início da Guerra Fria –, Jorge Amado escreve vários livros
sob a égide do realismo socialista até o ano de 1954, quando publica a trilogia
Os subterrâneos da liberdade, romance que termina com a personagem Marina,
militante comunista disciplinada, gritando apoteoticamente: “Viva Luís Carlos
Prestes!”. O líder do PCB já havia, aliás, inspirado as letras de Amado em
outras ocasiões, como em 1941/42, quando escreveu O cavaleiro da esperança,
livro sobre a vida do dirigente comunista brasileiro, que tinha o objetivo de
contribuir com a campanha por sua anistia e que, segundo muitos, lançou o escritor
baiano para o mundo das estrelas literárias do comunismo.
Entusiasmo norte-americano
Sobre a divisão de sua produção literária em duas fases,
Jorge Amado concordava apenas em parte com a visão de que Gabriela pertencia a
uma nova etapa. Certa vez, numa das entrevistas que concedeu a Alice Raillard,
tradutora de inúmeros livros seus para o francês, lembrou que o prefácio da
edição cubana de Gabriela ironizava as críticas dos militantes comunistas
brasileiros, que consideravam o romance o fim de tudo: “Segundo esse prefácio,
meu livro era marxista, onde a sociedade era analisada com lucidez e rigor
perfeitos”.
Para Amado, Gabriela pertencia a uma nova etapa literária
porque era uma história de amor, e não porque havia abandonado a abordagem
política. Também não concordava com que esse discurso fosse a única tônica de
sua produção anterior: “Ele (o discurso político) está ausente em Terras do sem
fim (1943), aparece muito pouco em São Jorge de Ilhéus (1944), e se encontra
somente no epílogo de Seara vermelha (1946)”, defendia-se o escritor.
Mesmo que Jorge Amado não tenha deixado de lado o contexto
social e a crítica à realidade brasileira, o antropólogo Roberto da Matta, em
seu livro A casa e a rua, considera que o escritor baiano abandonou, em
Gabriela, a visão do intelectual de esquerda que tinha resposta para todos os
dilemas a partir de fórmulas feitas. Considera, ainda, que Amado passou a
apresentar, desde então, o gabriela_capa_euamundo como “uma complicada teia de
relações pessoais que sustenta a esperança nas boas amizades” e como uma
disputa muito mais real e complicada que a divisão esquerda/direita “entre os
que estão embaixo e os que estão em cima”.
O fato é que, naqueles tempos de Guerra Fria, a recepção de
Gabriela foi entusiástica por parte daqueles que estavam em posição oposta à
Rússia. Em 1962, quando o livro foi lançado nos Estados Unidos, o jornal The
New York Times registrava, em sua coluna de crítica literária, uma visão oposta
à que foi apresentada no prefácio da edição cubana: “Gabriela representa, sem
dúvida, a liberação do Sr. Amado de um longo período de compromisso ideológico
com a ortodoxia comunista. (...) Está completamente convencido de que doutrinas
rígidas extraídas da experiência russa são agora de pouco valor para o Brasil”.
Poucas semanas após a publicação da crítica, Gabriela entra
para a lista dos best sellers do jornal e nela permanece por quase um ano. Era
o esmorecimento da resistência do sistema literário norte-americano à obra de
Jorge Amado.
Texto e imagens reproduzidos do site: multirio.rj.gov.br
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