Publicado originalmente no site da revista Bula.
A última entrevista de Graciliano Ramos.
Por Carlos Willian Leite.
Numa manhã de dezembro de 1948, dez anos após a publicação
de “Vidas Secas”, Graciliano Ramos se confessa ao jornalista e escritor Homero
Senna, em sua última longa entrevista
Principio por pedir a Graciliano Ramos que me diga alguma
coisa sobre os começos de sua vida, no interior de Alagoas, na cidade de
Quebrangulo (não Quebrângulo, como geralmente se diz), onde nasceu. “Mas isso
tudo está contado em ‘Infância’. Valeria a pena repetir?” E como eu dissesse
que sim, resumiu: “De minha cidade natal não guardo a menor lembrança, pois saí
de lá com um ano. Criei-me em Buíque, zona de indústria pastoril, no interior
de Pernambuco, para onde, a conselho de minha avó, meu pai se transferiu com a
família. Em Buíque morei alguns anos e muitos fatos desse tempo estão contados
no meu livro de memórias”.
Abro o volume, para conferir, e, entre outras coisas, lá
encontro este perfil psicológico do velho Ramos, traçado pelo filho: “Tinha
imaginação fraca e era bastante incrédulo. Aborrecia os ateus, mas só
acreditava nas contas correntes e nas faturas. Desconfiava dos livros, que
papel aguenta muita lorota, e negou obstinadamente os aeroplanos. Em 1934
considerava-os duvidosos”.
De quem o romancista teria herdado, então, o gosto pela
literatura? Talvez do avô paterno, cujo retrato desbotado costumava admirar no
álbum que se guardava no baú, e de quem admite que tenha recebido em legado “a
vocação absurda para as coisas inúteis”. De sua mãe, o espírito infantil
recolheu esta impressão: “Uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a
mexer-se, várias bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má,
olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura”,
ente difícil que na harmonia conjugal “se amaciava, arredondava as arestas,
afrouxava os dedos que batiam no cocuruto, dobrados, e tinham a dureza de
martelos”.
De Buíque, onde o romancista frequentou a primeira escola,
experimentou os primeiros desânimos diante dos livros didáticos do Barão de
Macaúbas e viveu algumas das inesquecíveis aventuras de sua meninice, a família
mudou-se para Viçosa, não a de Minas, terra do presidente Bernardes, mas a
açucareira do interior de Alagoas. O que foi a extensa caminhada, de dezenas de
léguas, desde os campos ralos, povoados de xiquexiques e mandacarus, até uma
nova paisagem, de vegetação densa e muito verde, longa viagem feita em lombo de
animal, está contada numa das melhores páginas de “Infância”.
De Viçosa, Graciliano passou a Maceió, onde frequentou um
colégio mau; voltou e, aos 18 anos, foi morar em Palmeira dos Índios, no
interior do Estado. Em Palmeira dos Índios chegaria a prefeito, e foi graças a
dois relatórios que escreveu que se tornou conhecido. Mas não precipitemos os
acontecimentos.
Estamos ainda em 1914. Nesse ano realiza Graciliano sua
primeira viagem ao Rio, tendo trabalhado como foca de revisão. No “Correio da
Manhã” e no “O Século”, de Brício Filho, não passou de suplente de revisor,
trabalhando apenas quando o revisor efetivo faltava. Em “A Tarde”, porém, um
jornal surgido naquela época para defender Pinheiro Machado, chegou a revisor
efetivo. Morou em várias pensões, naquele Rio dos princípios do século, que
tantos cronistas já têm descrito. Os antigos endereços ficaram-lhe na memória,
e sem qualquer esforço o romancista os vai citando: Largo da Lapa 110;
Maranguape 11, Riachuelo 19. Todos numa zona então muito pouco recomendável,
porque bairros de meretrício, de desordeiros e boêmios.
Nessa sua primeira viagem à Corte procurou aproximar-se de
algum escritor, fez camaradagem literária?
Graciliano Ramos — Nenhuma. Os escritores daquele tempo eram
cidadãos que, nas livrarias e nos cafés, discutiam colocação de pronomes e
discorriam sobre Taine. Machado e Euclides já haviam morrido, e os anos de 1914
e 1915, em que estive no Rio, assinalam, na literatura brasileira, uma época
cinzenta e anódina, de que é bem representativo um tipo como Osório Duque
Estrada, que então pontificava.
Ficou aqui até quando?
Graciliano Ramos — Até 1915. Depois de curta e nada sedutora
permanência na capital, achei melhor voltar para Palmeira dos Índios, onde já
havia deixado um caso sentimental e onde minha família estava toda sendo
dizimada pela peste bubônica. Num só dia perdi dois irmãos. Alarmado, e também
desgostoso com a vida que levava, tratei de voltar para Alagoas. Em outubro de
1915 casei-me e estabeleci-me com loja de fazendas em Palmeira dos Índios. A
mesma loja que fora de meu pai.
Nessa ocasião já tinha preocupações literárias?
Graciliano Ramos — Lia muito e escrevia coisas que inutilizava
ou publicava com pseudônimos.
Quer revelar alguns desses pseudônimos?
Graciliano Ramos — Você é besta.
Fazia versos?
Graciliano Ramos — Aprendi isso, para chegar à prosa, que
sempre achei muito difícil. Tendo vivido quinze anos completamente isolado sem
visitar ninguém, pois nem as visitas recebidas por ocasião da morte de minha
mulher eu paguei, tive tempo bastante para leituras. Depois da Revolução
Russa, passei a assinar vários jornais do Rio. Desse modo me mantinha mais ou
menos informado, e os livros, pedidos pelos catálogos, iam-me do Alves e do
Garnier, e principalmente de Paris, por intermédio do Mercure de France.
Então, se procurava manter-se tão bem informado a respeito
do que se passava no Rio e no resto do mundo, deve ter acompanhado, lá de
Palmeira dos Índios, o movimento modernista?
Graciliano Ramos — Claro que acompanhei. Já não lhe disse
que assinava jornais?
E que impressão lhe ficou do modernismo?
Graciliano Ramos — Muito ruim. Sempre achei aquilo uma
tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram
uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir,
eles importavam Marinetti.
Não exclui ninguém dessa condenação?
Graciliano Ramos — Já disse: salvo raríssimas exceções. Está
visto que excluo Bandeira, por exemplo, que aliás não é propriamente
modernista. Fez sonetos, foi parnasiano. E o “Solau do Desamado” é como as
“Sextilhas de Frei Antão”. Por dever de ofício, pois estou organizando uma
antologia de contos brasileiros, antologia que rola há mais de três anos, tive
de reler toda a obra de um dos próceres do modernismo. Achei dois contos de
cinco ou seis páginas cada um. E pergunto: isso justifica uma glória literária?
(Franze a testa, detém-se um instante, mas logo prossegue.)
Graciliano Ramos — Os modernistas brasileiros, confundindo o
ambiente literário do país com a Academia, traçaram linhas divisórias rígidas
(mas arbitrárias) entre o bom e o mau. E querendo destruir tudo que ficara para
trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser
salva. Vendo em Coelho Neto a encarnação da literatura brasileira — o que era
um erro — fingiram esquecer tudo quanto havia antes, e nessa condenação maciça
cometeram injustiças tremendas. Nas leituras que tenho feito, para a
organização da antologia a que me referi, encontrei vários contos, de autores
propositadamente esquecidos pelos modernistas e que seriam grandes em qualquer
literatura. Lembro-me de alguns: “O Ratinho Tique-Taque”, de Medeiros e
Albuquerque; “Tílburi de Praça”, de Raul Pompéia; “Só”, de Domício da Gama;
“Coração de Velho”, de Mário de Alencar; “Os Brincos de Sara”, de Alberto de
Oliveira. Nas antologias que andam por aí essas produções geralmente não
aparecem, e de alguns dos autores citados são transcritos contos que não dão a
ideia exata do seu talento e do domínio que tinham do gênero. Só posso atribuir
isso, como já disse, à desonestidade. Porque se os compararmos aos produtos dos
líderes modernistas, estes se achatam completamente.
Quer dizer que não se considera modernista?
Graciliano Ramos — Que ideia! Enquanto os rapazes de 22
promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão
alagoano, vendendo chita no balcão.
E como foi que chegou a prefeito da cidade?
Graciliano Ramos — Assassinaram o meu antecessor.
Escolheram-me por acaso. Fui eleito, naquele velho sistema das atas falsas, os
defuntos votando (o sistema no Brasil anterior a 1930), e fiquei vinte e sete
meses na prefeitura.
Consta que, como prefeito, soltava os presos para que fossem
abrir estradas…
Graciliano Ramos — Não era bem isso. Prendia os vagabundos,
obrigava-os a trabalhar. E consegui fazer, no município de Palmeira dos Índios,
um pedaço de estrada e uma terraplenagem difícil.
Em que ano foi isso?
Graciliano Ramos — Em 1930.
O ano do relatório…
Graciliano Ramos — Os relatórios são dois: há o de 1929 e o
de 30.
Relatórios do prefeito ao governador do Estado, dando contas
de sua administração, não é?
Graciliano Ramos — Justo. Apenas, como a linguagem não era a
habitualmente usada em trabalhos dessa natureza, e porque neles eu dava às
coisas seus verdadeiros nomes, causaram um escarcéu medonho. O primeiro teve
repercussão que me surpreendeu. Foi comentado no Brasil inteiro. Houve jornais
que o transcreveram integralmente.
E assim nasceu o escritor…
Graciliano Ramos — Não. Nasceu antes. Mas tinha o bom senso
de queimar os romances que escrevia. Queimaram-se diversos. “Caetés”,
infelizmente, escapou e veio à publicidade.
Numa edição Schmidt…
Graciliano Ramos — Exato. Por intermédio de Rômulo de
Castro, Schmidt, que aqui no Rio lera os meus relatórios, pediu-me que lhe
enviasse artigos para a imprensa. Como não me interessasse fazer carreira no
jornalismo, nem construir nome literário, recusei-me. Aliás, nessa ocasião já
estava de mudança para Maceió, pois fora nomeado diretor da Imprensa Oficial.
Com a revolução, quis demitir-me, mas não pude. E lá fiquei até dezembro de
1931. Não suportando os interventores militares que por lá andaram, larguei o
cargo e voltei para Palmeira dos Índios, onde, numa sacristia, fiz “São
Bernardo”. Estava no capítulo 19, capítulo que escrevi já com febre, quando
adoeci gravemente com uma psoíte e tive de ir para o hospital. Do hospital
ficaram-me impressões que tentei fixar em dois contos: “Paulo” e “O Relógio do
Hospital” — e no último capítulo de “Angústia”. No delírio, julgava-me dois,
ou um corpo com duas partes: uma boa, outra ruim. E queria que salvassem a
primeira e mandassem a segunda para o necrotério. Estava convalescendo, em
janeiro de 1933, quando tive notícia da minha nomeação para diretor da
Instrução Pública. Não acreditei.
Qual o interventor que o nomeou?
Graciliano Ramos — O capitão Afonso de Carvalho, hoje
coronel. Foi disparate. Permaneci no cargo até 3 de março de 1936. Em 1933
Schmidt lançara “Caetés”, que eu trazia na gaveta desde muito tempo. Naquele
dia do mês de março de 1936, porém, sem qualquer explicação, fui preso e
remetido para o Recife. onde passei dez dias incomunicável. Depois fui metido
no porão do “Manaus” e vim para cá. Tive dez ou doze transferências de cadeia.
Qual o motivo da prisão?
Graciliano Ramos — Sei lá! Talvez ligações com a Aliança
Nacional Libertadora, ligações que, no entanto, não existiam. De qualquer
maneira, acho desnecessário rememorar estas coisas, porque tudo aparecerá nas
“Memórias da Prisão”, que estou compondo.
Foi assim, então, que veio para o Rio?
Graciliano Ramos — Foi. Arrastado, preso.
Mas valeu a pena, não?
Graciliano Ramos — Sinceramente, não sei. Nunca tive planos
na vida, muito menos planos de sucesso. Depois daquela experiência da
mocidade, o Rio não me atraía. No entanto vim, no porão do Manaus, e aqui vivo.
(Estávamos, portanto, diante de um antipará. Os “parás”, na
saborosa classificação de Jaime Ovale, são “esses homenzinhos terríveis que vêm
do Norte para vencer na capital da República; são habilíssimos, audaciosos,
dinâmicos e visam primeiro que tudo o sucesso material, ou a glória literária,
ou o domínio político”. Que pensaria Graciliano dessa fauna? Lanço a pergunta e
a resposta não tarda.)
Graciliano Ramos — Está claro que existe um “exército do
Pará”. Na maioria dos casos, porém, os seus milicianos já chegam feitos do
Norte. Aqui vêm apenas colher os louros, ou, mais positivamente, as vantagens.
E no Rio em geral definham, tornam-se mofinos. Ignoro se também sou “Pará”.
Nunca fiz coisa que prestasse, mas ainda assim o pouco que fiz foi lá e não
aqui, onde a vida não nos deixa tempo para nada. Hoje leio apenas jornais, um
ou outro romance. De manhã escrevo; à tarde saio para as minhas ocupações
(inclusive para o “papo” na livraria); à noite trabalho. Onde iria achar tempo
para leituras? E se não tivesse lido um pouco no interior, onde os dias são
intermináveis, seria inteiramente analfabeto.
Quer dizer que acha preferível, para o escritor, a vida na
província?
Graciliano Ramos — No Nordeste não podemos falar em
“provincianismo”, luxo dos Estados grandes: São Paulo, Minas, Rio Grande do
Sul. Nós, do Nordeste, temos de ser “municipais” ou “nacionais”. E, a ter de
morar em qualquer dos Estados daquela região, acho preferível o interior às
capitais, porque estas, seus mexericos, seus grupinhos literários, suas
academiazinhas, seus institutos históricos, são sempre muito ruins. Já no
interior poderá um homem entrar em contato íntimo com a terra e o povo. É, por
exemplo, de onde vem a força de um José Lins do Rego, de uma Raquel de Queirós,
de um Jorge Amado.
Sabe que é apontado como um dos nossos escritores modernos
que melhor manejam o idioma?
Graciliano Ramos — Conversa. Talvez, se houvesse alguma
verdade nisso, eu devesse muito aos caboclos do Nordeste, que falam bem. É lá
que a língua se conserva mais pura. Num caso de sintaxe de regência, por
exemplo, entre a linguagem de um doutor e a do caboclo — não tenha dúvida, vá
pelo caboclo, e não erra. Note que me refiro ao caboclo do sertão. O do litoral
vai-se estrangeirando.
Mas não me venha dizer que seu aprendizado da língua se fez
apenas com os caboclos de Buíque e Palmeira dos Índios.
Graciliano Ramos — Claro que não. Muitas coisas não poderiam
eles ensinar-me. Está visto que tive de chatear-me lendo gramáticas. E
arrepiei-me com a leitura dos frades.
Consta que você, como Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, é
grande leitor de dicionários.
Graciliano Ramos — Consta e é verdade. Dicionário, para
mim, nunca foi apenas obra de consulta. Costumo ler e estudar dicionários. Como
escritor, sou obrigado a jogar com palavras. Logo, preciso conhecer o seu valor
exato.
Acha isso uma qualidade?
Graciliano Ramos — Não sei. O que sei é que não há talento
que resista à ignorância da língua.
Poderia, hoje, deixar de escrever?
Graciliano Ramos — Quem me dera poder deixar.
Sua obra de ficção é autobiográfica?
Graciliano Ramos — Não se lembra do que lhe disse a respeito
do delírio no hospital? Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que
sou. E se os personagens se comportarem de modos diferente, é porque não sou um
só. Em determinadas condições, procederia como esta ou aquela das minhas
personagens.
Já se pode viver, no Brasil, da profissão de escritor?
Graciliano Ramos — Não creio. A última edição de minhas
obras rendeu-me 50 contos. Da edição americana de “Angústia”, recebi 10 contos
apenas. Tenho também três livros traduzidos para o espanhol. Mas os negócios na
Argentina e no Uruguai andaram mal. Como não tenho o hábito de frequentar os
suplementos e as revistas ilustradas, a literatura me rende pouco.
Que outras atividades exerce?
Graciliano Ramos — Trabalho no “Correio da Manhã” e sou
inspetor de ensino secundário no ginásio São Bento.
Gosta do emprego que tem?
Graciliano Ramos — É-me indiferente. Trata-se de uma
sinecura como outra qualquer. Em todo caso, nunca tive uma falta nem tirei
licença.
E no “Correio da Manhã”, qual o seu serviço?
Graciliano Ramos — Corrijo a gramática dos repórteres e
noticiaristas.
Gosta de jornalismo?
Graciliano Ramos — Não. Nem me considero jornalista.
Com essa vida de jornal, naturalmente dorme tarde.
Graciliano Ramos — À uma hora. E me levanto às sete.
Nos seus livros trabalha, portanto, apenas de manhã.
Graciliano Ramos — Exato. Até às onze, mais ou menos.
E para trabalhar, exige um bom ambiente ou não liga a isso?
Graciliano Ramos — Trabalho em qualquer parte. “Angústia”
foi escrito em palácio, quando eu era diretor da Instrução Pública de Alagoas.
“São Bernardo”, em péssimas condições, numa igreja. Qualquer canto me serve.
Mas disponho, hoje, em casa, de uma confortável sala de trabalho: isso que os
burgueses costumam chamar “escritório”.
Gosta da casa onde mora?
Graciliano Ramos — Em qualquer lugar estou bem. Dei-me bem na
cadeia. Tenho até saudades da Colônia Correcional. Deixei lá bons amigos.
(Casado duas vezes, Graciliano tem seis filhos e duas netas.
Pergunto-lhe se costuma ajudar a mulher em casa, e ele se espanta.)
Graciliano Ramos — Já faço muito em pagar as despesas.
Aliás, tenho horror a compras. E quando ouço o telefone, tranco-me.
Aos domingos, o que costuma fazer?
Graciliano Ramos — Em geral escrevo pela manhã e à tarde
durmo.
(O autor de “Vidas Secas” não faz visitas, não vai a
concertos nem a conferências e não gosta de música. Tem, entretanto, um velho
hábito: vai diariamente à Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, e fica lá
várias horas, num banco que já é quase propriedade sua, localizado no fundo da
loja.)
Graciliano Ramos — Muitas vezes vou lá dormir. Mas aparecem
amigos, conhecidos, e toca-se a conversar.
(Em virtude desse hábito, muita gente pensa que Graciliano
dá a vida por um “papo”. Ele, porém, desfaz-me essa impressão.)
Graciliano Ramos — Quase sempre converso forçado, porque
chegam pessoas. Mas na verdade muitos dias preferiria ficar quieto, sem trocar
palavra. Também é fato que lá aparecem bons amigos, desses que a gente revê com
prazer.
(Como Manuel Bandeira, Graciliano recebe inúmeros originais,
para ler e dar opinião. A Bandeira dirigem-se sobretudo os jovens poetas ainda
incertos quanto à própria vocação. E os que se iniciam na prosa, geralmente
procuram mestre Graciliano. Este, assim, tem sempre uma quantidade enorme de
originais para ler.)
Graciliano Ramos — É maçada. Recebo dezenas de originais.
São principiantes, geralmente dos Estados, que desejam, é claro, alguns
elogios. Já me aconteceu receber, na mesma semana, originais do Piauí e de
Goiás. Eu devia fazer como José Lins: afirmar, sem leitura, que tudo é
magnífico.
(Os escritores jovens do Brasil, que dos mais distantes
Estados remetem originais para Graciliano Ramos, em busca de uma opinião, e nem
sempre recebem resposta, ou a resposta que esperavam, podem, entretanto,
considerar-se vingados: na própria casa do romancista surgem originais, e
originais que ele tem, forçosamente, de ler, e talvez percorra com olhos mais
benignos: os contos de seu filho Ricardo, de 19 anos, e de sua filha Clara,
quatro anos mais moça que o irmão. Ambos têm vocação para as letras. Ricardo,
jornalista, já tem publicado alguma coisa, naturalmente com a chancela paterna.
E, ainda que Graciliano nos afirme o contrário, nos diga que nenhum deles lhe
pede opinião, é divertido imaginar o romancista, cansado de emendar o português
dos noticiaristas do “Correio da Manhã”, e de ler originais que lhe chegam, às
dezenas, de todo o país, ter, em casa, de dar opinião sobre os trabalhos dos
filhos.)
(Pergunto qual a sua impressão dos contos de Ricardo Ramos,
e ele não se nega a opinar.)
Graciliano Ramos — Regulares. Tem jeito e poderá fazer coisa
que preste.
E Clara?
Graciliano Ramos — É ainda criança. Tem 15 anos apenas e
está concluindo o curso secundário.
(Despedindo-me de Graciliano, depois da longa conversa que
aqui tentei reproduzir, faço-lhe uma última pergunta: Acredita na permanência
de sua obra? E sem qualquer pose, sem nada que deixasse transparecer falsa
modéstia, antes dando a impressão de que falava com absoluta sinceridade, esse pessimista
seco e amargo respondeu-me.)
Graciliano Ramos — Não vale nada; a rigor, até, já
desapareceu.
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Entrevista publicada na “Revista do Globo”, edição nº 473,
em 18 de dezembro de 1956. E posteriormente no livro “República das Letras”, de
Homero Senna, editora Civilização Brasileira.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistabula.com
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