Foto: Sérgio Arnaud.
Mafalda Verissimo, Paulo Gurgel Valente,
Erico Verissimo, Clarice Lispector
e Pedro Gurgel Valente, 1955.
Foto: arquivo Clarice Lispector/acervo IMS.
Publicado originalmente no site elfikurten
Erico Verissimo - entrevistado por Clarice Lispector.
“Não sou profundo. Espero que me desculpem.”
Erico é escritor que não preciso apresentar ao público:
trata-se, com Jorge Amado, do único escritor no Brasil que pode viver da vendagem de seus livros. Vendem
como pão quente. Recebido de braços abertos pelos leitores, no entanto a
crítica muitas vezes o condena.
Clarice Lispector – Erico, por que você acha que não agrada
aos críticos e aos intelectuais?
Erico Verissimo – Para começo de conversa, devo confessar
que não me considero um escritor importante. Não sou um inovador. Nem mesmo um
homem inteligente. Acho que tenho alguns talentos que uso bem... mas que
acontece serem os talentos menos apreciados pela chamada “crítica séria”, como,
por exemplo, o de contador de histórias. Os livros que me deram popularidade,
como Olhai os lírios do campo, são romances medíocres. Nessa altura me
pespegaram no lombo literário vários rótulos: escritor para mocinhas,
superficial etc... O que vem depois dessa primeira fase é bastante melhor mas,
que diabo! pouca gente (refiro-me aos críticos apressados) se dá ao trabalho de
revisar opiniões antigas e alheias. Por outro lado, existem os “grupos”. Os
esquerdistas sempre me acharam “acomodado”. Os direitistas me consideram
comunista. Os moralistas e reacionários me acusam de imoral e subversivo. Havia
ainda essa história cretina de “norte contra sul”. E ainda essa natural má
vontade que cerca todo o escritor que vende livro, a ideia de que best-seller
tem de ser necessariamente um livro inferior. Some tudo isto, Clarice, e você
não terá ainda uma resposta satisfatória à sua pergunta. Mas devo acrescentar
que há no Brasil vários críticos que agora me levam a sério, principalmente
depois que publiquei O tempo e o vento. (Bons sujeitos!)
Clarice Lispector – Você se sente realizado como escritor,
Erico? Eu, por exemplo, ainda não me sinto, e tenho a impressão de que será
assim até eu morrer.
Erico Verissimo – Realizado, não. Mas confesso que não me
sinto frustrado. Agora, acho que você tem todo o direito de considerar-se
realizada. (É pena que isso não seja, no escritor, uma questão de direito.)
Você, na minha opinião, trouxe algo de novo e importante para a nossa
literatura.
Clarice Lispector – E como homem, você se sente realizado?
Você, Erico, é uma das pessoas mais gostáveis que conheci. Você é uma pessoa
humana de uma largueza extraordinária. Que é que você me diz disso?
Erico Verissimo – A resposta é quase idêntica à pergunta
anterior. Reduzi ao mínimo as minhas frustrações. Sempre fui um sujeito tímido
e moderado, até no sonho, nos projetos. Tenho tudo ou quase tudo quanto desejei,
e muito mais do que ousei esperar. A ideia de ser querido, digamos a palavra
exata – amado, me agrada, me alegra mais do que a ideia de ser admirado. Se
você me perguntasse se sou um homem natural, para ser bem sincero, eu lhe
confessaria que de certo modo moldei a minha própria imagem, a face do homem
que eu desejo que os outros vejam.
Clarice Lispector – Você trocaria seu público, que adora
você, por uma crítica que lhe fosse mais favorável?
Erico Verissimo – Não.
Clarice Lispector – Erico, sem interromper o assunto, estou
me lembrando com saudade de Washington, eu como mulher de diplomata, e você
trabalhando na OEA. Você se lembra de como eu fazia ninho na vida e na casa de
vocês? Que é que você estava escrevendo naquela ocasião? Eu, por exemplo,
estava escrevendo A maçã no escuro. Foi um período muito produtivo, no sentido
de trabalho e no sentido de uma amizade que se formou para sempre entre você,
Mafalda e eu.
Erico Verissimo – Quero que você saiba (e aqui falo também
em nome de minha mulher) que as melhores recordações que guardo de nossa estada
em Washington D.C. são as das horas que passamos em sua casa, com você e sua
gente. Detestava o meu posto da União Pan-Americana. Não consegui escrever uma
linha durante esses três anos burocráticos. O que sobrou de melhor desse tempo
foi a nossa amizade. Você saiu daquela chatice federal com um romance denso de
substância humana e poética.
Clarice Lispector – Qual é o seu personagem mais importante?
O meu é sempre do livro que eu esteja escrevendo no momento.
Erico Verissimo – O primeiro vulto que me vem à mente é o do
Capitão Rodrigo. Depois penso em Floriano, meu sósia espiritual. Mas não me
decido a escolher. Prefiro dizer que os meus personagens mais importantes são as
mulheres de O tempo e o vento, como Bibiana e Maria Valéria.
Clarice Lispector – Os críticos, ao que ouvi dizer, acham
você pouco profundo. Que me diz disso?
Erico Verissimo – Lembro-me de um escritor francês que
costumava dizer que un pot de chambre est aussi profond. Mas, falando sério,
concordo com os críticos: não sou profundo. Espero que me desculpem.
Clarice Lispector – Quando foi, Erico, que você começou a
escrever? E motivado pelo quê?
Erico Verissimo – Em menino, na escola, eu fazia
“primorosas” redações. Grau dez. Foi ainda em Cruz Alta, atrás dum balcão de
farmácia, que escrevi o primeiro conto. Por quê? Não sei. Aí me lembro que
naquele tempo eu ainda pensava que podia ser pintor (acabo de comprar uma caixa
de tintas. Pintores do Brasil, alerta!). Meu primeiro livro de histórias –
Fantoches – ainda leva a marca de minhas leituras da época: Oscar Wilde,
Bernard Shaw e o infalível Anatole France.
Clarice Lispector – Surpreendo-me de nenhum cineasta ter
feito um filme baseado em algum de seus livros. Você gostaria de se ver no
cinema?
Erico Verissimo – Uma companhia argentina filmou Olhai os
lírios do campo em 1946. O retrato foi também transformado num filme, com gente
de São Paulo. Nos Estados Unidos, Noite foi “deformado” num teleplay, com Jason
Robbards, Franchot Tone e E. G. Marshall. Medonho! Todos os anos recebo
propostas de cineastas que querem filmar O Continente. Fica tudo em vagas
conversas. Sou péssimo homem de negócios. Detesto discutir contratos e quando
discuto saio perdendo.
Clarice Lispector – Sua fama é enorme, Erico. Se eu fosse
famosa assim, teria minha vida particular invadida, e não poderia mais
escrever. Como é que você se dá com a fama? Eu soube que o ônibus de turistas
em Porto Alegre tem como parte do programa mostrar sua casa.
Erico Verissimo – É claro que a “fama” tem um lado positivo
– a sensação de que a gente se comunica com os outros passa a existir para
milhares de leitores. Não só como autor, através dos personagens, como também
como uma espécie de figura mitológica. É engraçado. Essa história do ônibus me
encabula muito. Mas eu cultivo a virtude da paciência. E detesto decepcionar os
que me procuram, os que me querem conhecer em carne e osso. Minha casa vive de
portas abertas. Há noites em que temos de dez a vinte visitantes inesperados.
Todas as semanas recebo dezenas de estudantes que querem entrevistar-me, e a
gama vai do curso primário ao universitário. Pessoas com casos sentimentais me
procuram para desabafar. Empresto-lhes o ouvido, o olho, e não raro uma
afetuosa atenção. Frequentemente consigo ajudar realmente um ou outro
“paciente”. E isso me alegra. Mas pelo amor de Deus, Clarice, não pense nem
deixe que seus leitores imaginem que eu me levo a sério.
Clarice Lispector – Erico, qual foi a sua maior alegria como
escritor?
Erico Verissimo – O primeiro livro publicado? O primeiro
traduzido? Não sei. Tive e continuo tendo muitas alegrias. Como escritor.
Clarice Lispector – E como homem, qual foi a sua maior
alegria?
Erico Verissimo – Os filhos. Os netos.
Clarice Lispector – De onde lhe vem a inspiração para o seu
trabalho?
Erico Verissimo – Tenho pensado muito nisso. Não sei de onde
vem isso a que chamamos inspiração por falta de melhor palavra.
Clarice Lispector – Você entraria na Academia Brasileira de
Letras? Muita gente boa termina lá.
Erico Verissimo – Não. Respeito a Academia, onde vejo muito
boa gente. Mas não tenho, nunca tive, a menor vontade de fazer parte da ilustre
companhia. Questão de temperamento.
Clarice Lispector – Você planeja de início a história ou ela
vai se fazendo aos poucos? Eu, por exemplo, acho que tenho um vago plano
inconsciente que vai desabrochando à medida que trabalho.
Erico Verissimo – Planejo, mas nunca obedeço rigorosamente
ao plano traçado. Os romances (você sabe disso melhor que eu) são artes do
inconsciente. Por outro lado, estou quase a dizer que me considero mais um
artesão do que um artista. E com isto você compreenderá melhor por que a
crítica não me considera profundo.
Clarice Lispector – Você agora percorreu meio mundo com
Mafalda. O que foi que mais impressionou você?
Erico Verissimo – A Mafalda. A capacidade que ela tem de me
compreender, ajudar, acompanhar e – de vez em quando – dirigir, sem que este
teimoso gaúcho serrano dê pela coisa... Herdei de meu avô tropeiro o gosto
pelas andanças.
Quero sempre ver o que está pela frente. Mafalda tem alma
calma no melhor sentido da palavra. Quer logo estabelecer-se, radicar-se. Mas
eu a arrasto para dentro de trens, ônibus e aviões, e lá nos vamos. Gosto
principalmente dos países latinos da Europa: França, Itália, Espanha,
Portugal... Tenho uma fascinação enorme pela área mediterrânea. A Grécia e
Israel me encantaram. Vi recentemente a Tchecoslováquia num dos momentos mais
belos de sua história. No momento estou preparando um livro de viagens – pessoas
e lugares que encontrei, certos momentos inesquecíveis que vivi – pretexto para
falar de pintura, música, paisagens, literatura, problemas humanos, política
etc.
Clarice Lispector – Agora que publiquei um livro de história
para crianças e outro meu vai sair por esses dias, interesso-me em saber o que
você pensa da literatura infantil no nosso país.
Erico Verissimo – Devo dizer que só a semana passada é que
li a história do seu coelhinho. Acho que você usou a linguagem adequada. Foi
mesmo uma história contada ao Paulinho (que hoje deve ser um Paulão). Eu
gostaria de voltar a escrever para crianças. As nossas crianças precisam
livrar-se do Superman, do Batman. Mas... que histórias poderíamos contar-lhes
nesta hora desvairada? Isto é um assunto para discutir. Nossa literatura
infantil ainda é muito pobre.
Clarice Lispector – Que é que você mais quer no mundo,
Erico?
Erico Verissimo – Primeiro, gente. A minha gente. A minha
tribo. Os amigos. E depois vêm – música, livros, quadros, viagens... Não
negarei que gosto também de mim mesmo, embora não me admire.
ERICO VERISSIMO – O autor de O tempo e o vento e Olhai os
lírios do campo foi convidado para substituir Alceu Amoroso Lima na direção do
Departamento de Assuntos Culturais da União Pan Americana, em Washington, entre
1953 e 1956. Em companhia da esposa Mafalda e dos filhos Clarissa e Luiz
Fernando conviveu com Clarice Lispector e Maury Gurgel Valente. Erico e Mafalda
são padrinhos dos filhos de Clarice: Pedro e Paulo Gurgel Valente.
Fonte: LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de
Janeiro: Rocco, 2007.
Texto e imagens reproduzidos do site: elfikurten.com.br
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