Foto: Acervo da Academia Brasileira de Letras
Publicado originalmente no site do jornal DIÁRIO DE PERNAMBUCO, em 09/01/2020
Há 100 anos, nascia João Cabral de Melo Neto, o 'poeta
engenheiro'
Por: Emannuel Bento
Planejar a construção de uma casa envolve definição do
terreno, levantamento da mão de obra necessária para a execução até a obtenção
dos materiais e documentos. De forma símil, João Cabral de Melo Neto propôs uma
engenharia ao escrever. Decidia qual seria o plano do livro, número de poemas,
temas tratados. Assim, foi eternizado na história da literatura brasileira e
mundial: um poeta sistemático, objetivo e consistente, que rejeitava o trabalho
poético como um fruto de epifanias criativas ou inspirativas. E com isso tratou
da realidade dura do Nordeste com olhar atento, sobretudo às desigualdades
sociais. Hoje é comemorado o centenário do pernambucano, que viajou o globo
pelo ofício de diplomata, mas foi imortalizado no mundo pelos seus poemas. Em
1999, mesmo ano de sua morte, tornou-se o único poeta brasileiro a ser forte
candidato a receber o prêmio Nobel de Literatura.
Filho de Luís Antônio Cabral de Melo e Carmen Carneiro Leão
Cabral de Melo, João Cabral nasceu no Recife, mas passou parte considerável da
infância em engenhos de açúcar da família, em São Lourenço da Mata e Moreno, na
Zona da Mata pernambucana. Ainda aos 8 anos, já apreciava cordéis e até lia
algumas histórias para os empregados da família. Já nessa época, via a
diferença entre os senhores de engenho e os mais pobres, fosse pelos cordéis ou
pelo contato com os funcionários.
Aos 10 anos, ingressou no Colégio de Ponte d’Uchoa, dos Irmãos Marista, onde estudou até concluir o secundário. Teve uma formação muito rica, que já o preparava para a carreira de diplomata. Estudou muito o parnasianismo de Olavo Bilac, escola que incorporou o espírito positivista e científico, que influenciou o viés “construtivista” de poema.
Na década de 1940, a família se transferiu para o Rio de
Janeiro. Na capital fluminense, publicou seu primeiro livro, Pedra do sono
(1942), uma coletânea com poemas escritos durante a adolescência em Pernambuco.
A obra é considerada um marco inicial do “cabralismo”, pois já tinha uma preocupação
na construção do poema e do objeto do qual se fala, mas com experimentação
poética e tentativas surrealistas - essa dualidade era evidenciada no título,
que mescla o concreto e o sereno.
Em 1945, após ingressar no Itamaraty, peregrinou por vários
países, como Inglaterra, Suíça e Senegal. O destaque foi a Espanha, onde viveu
em cidades como Barcelona, Sevilha e Andaluzia. “A temporada em Andaluzia
despertou em Cabral o interesse por manifestações populares da cultura, como o
canto cigano e as touradas”, explica Antonio Carlos Secchin, membro da Academia
Brasileira de Letras (ABL) e um dos principais pesquisadores da obra de Cabral.
“E foi somente a partir da experiência espanhola que o erotismo passou a marcar
presença em sua produção.”
O diálogo com a cultura espanhola influenciou um processo de
evidenciar uma visão objetiva do discurso lírico. O marco do início dessa linha
é O engenheiro (1945). Dez anos depois, lançou sua “magnum opus”: Morte e vida
severina, livro que retrata, em poema dramático, a trajetória de um retirante
do Sertão nordestino em busca de vida melhor no Litoral urbano, narrativa comum
em época de forte êxodo rural. O poema segue duas linhas que criam uma
dicotomia, já existente no título. O subtítulo do poema é Auto de Natal
pernambucano, criando um elo com autos medievais, conhecidos por linguagem
simples, às vezes cômicos e moralizadores.
Na segunda metade dos anos 1960, o texto foi adaptado para o
teatro em meio ao ápice de sua carreira. Foi nesse período que ele ingressou na
ABL e publicou Educação pela pedra (1966), considerada sua obra-prima pela
crítica. Muitos consideravam, inclusive, que não havia mais para onde
progredir. O livro reúne 48 poemas criados de um modo rigoroso e sistemático,
que procuravam atingir a consistência de uma pedra. O poema que intitula a obra
traz lições que falam muito sobre sua linguagem seca e objetiva, criando um elo
com a dura realidade do Nordeste. Realidade árida, ser humano árido.
Da obra poética de João Cabral, ainda se pode mencionar O
cão sem plumas (1950), O rio (1954), Museu de tudo (1975), Auto do frade
(1986), entre outros. João Cabral passou os últimos anos da vida mais recluso
em um apartamento no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Chegou a produzir
cinco livros nessa época, bem menos explorados pela nova geração de poetas -
que evitavam seu formalismo - e pelos críticos.
Fotos do Acervo familiar
Em carta de abril de 1984, para o editor Daniel Pereira,
João Cabral escreveu: "Gostaria, francamente, que se esquecessem de minha
existência como escritor. Isto é, gostaria que a gente de hoje antecipasse o
esquecimento que virá para a minha poesia dentro de breves anos". Foi uma
das vezes que, já recluso, o engenheiro se equivocou. A obra de João Cabral
está sendo amplamente revisitada. Estão previstos um livro de entrevistas de
Ivan Marques (que já é autor da biografia do poeta), uma fotobiografia de
Eucanãa Ferraz e dois exemplares reunindo a obra completa na poesia e os textos
em prosa.
Uma coletânea bilíngue (português e espanhol) de poemas será
lançada na Feira do Livro de Quito, no Equador. O autor também será homenageado
no 9º Festival Literário de Araxá (Fliaraxá), em Minas Gerais, em julho. A
pesquisadora Edineia Rodrigues Ribeiro encontrou conteúdo inédito no acervo do
autor na Fundação Casa de Rui Barbosa, que ainda está sendo analisado - mas
cerca de 40 poemas já foram confirmados como inéditos e outras novidades podem
surgir. A editora Alfaguara, detentora dos direitos autorais de Cabral,
finaliza os trâmites para relançar as obras.
LINHA DO TEMPO
1920
9 de janeiro - Nasce no Recife, filho de Luís Antônio Cabral
de Melo e Carmen Carneiro Leão Cabral de Melo. Passa parte da infância em
engenhos da família nos municípios da Zona da Mata.
1930
Ingressa no Colégio de Ponte d’Uchoa, dos Irmãos Marista,
onde permanece até concluir o curso secundário.
1938
Passa a frequentar o Café Lafayette, ponto de encontro de
intelectuais do Recife.
1942
Publica o primeiro livro de poemas, Pedra do sono, reunindo
diversos poemas ainda poucos desenvolvidos e escritos durante a adolescência em
Pernambuco.
1945
Publica o segundo livro, O engenheiro, custeado pelo
empresário e poeta Augusto Frederico Schmidt.
1947
Ingressa na carreira diplomática e passa a viver em várias
cidades do mundo, como Barcelona, Londres, Sevilha, Marselha, Genebra, Berna,
Assunção e Dacar.
1952
É afastado do Itamaraty pelo governo de Getúlio Vargas,
acusado de criar uma “célula comunista”
no Ministério de Relações Exteriores junto com mais quatro diplomatas. Volta ao
serviço em 1954 ao recorrer no Supremo Tribunal Federal (STF).
1955
Lança Morte e vida severina, o livro mais popular, que
retrata em forma de um poema dramático a trajetória de um retirante do Sertão
nordestino em busca de uma vida melhor no Litoral.
1966
Lança A educação pela pedra, onde reúne 48 poemas numa
coletânea em que o atinge o ápice de seu estilo de composição poética, sendo um
dos últimos livros em que João Cabral propôs uma “arquitetura” ao escrever.
1969
É eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), para
ocupar a cadeira número 37, tomando posse em 6 de maio de 1969. Substituiu o
jornalista paraibano Assis Chateaubriand, homenageado em seu discurso de posse.
1975
Lança Museu de tudo, uma coletânea de 84 poemas esparsos,
onde o poeta recifense abre um pouco mão da visão “arquitetônica”
característica dos livros anteriores.
1990
João Cabral de Melo Neto é aposentado no posto de
embaixador.
1994
A Editora Nova Aguilar, do Rio de Janeiro, publica a vasta
obra completa do pernambucano.
1999
Morre no apartamento no bairro do Flamengo, na zona sul do
Rio de Janeiro, aos 79 anos. Ele estava deprimido e com graves problemas
visuais.
Texto e imagens reproduzidos do site: diariodepernambuco.com.br
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