Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 15 de abril de 2020
Morre Rubem Fonseca, o contista por excelência da realidade
brasileira
Autor de 'Feliz ano novo’, escritor mineiro sofreu um
infarto, aos 94 anos, em sua casa, no Rio de Janeiro
Por Joana Oliveira
Rubem Fonseca, um gigante da literatura nacional e um
contista por excelência, faleceu na tarde desta quarta-feira no Rio de Janeiro,
a poucas semanas de completar 95 anos. O escritor sofreu um infarto em casa, no
Leblon, Rio de Janeiro, e chegou a ser levado ao Hospital Samaritano, mas não
resistiu.
Um dos maiores nomes da letras brasileiras da segunda metade
do século XX, algumas das obras mais consagradas de Fonseca são Agosto (1990),
Feliz ano novo (1976), A cólera do cão (1963) e O cobrador (1979). Sempre
lúcido e criativo, publicou há dois anos Carne crua, seu último livro de contos
inéditos.
Nascido em Juiz de Fora (MG) em 11 de maio de 1925, José
Rubem Fonseca mudou-se aos oito anos para o Rio, onde inaugurou uma corrente na
literatura brasileira contemporânea que foi cunhada como brutalista por Alfredo
Bosi, em 1975. A democratização da violência era quase um personagem a mais em
suas histórias, nas quais os protagonistas eram, ao mesmo tempo, os narradores de
seus infortúnios e mistérios. Seus romances têm a estrutura de narrativas
policiais, muito marcadas pela oralidade, quiçá pelo fato de Fonseca ter atuado
como advogado e comissário de polícia no subúrbio carioca dos anos 1950. Não à
toa, muitos de seus protagonistas são delegados, inspetores, detetives
particulares, advogados criminalistas. Ou escritores.
Esse tom policialesco, com crimes ou mistérios a serem
desvendados, rendeu-lhe comparações com nomes como Arthur Conan Doyle, criador
de Sherlock Holmes. Sua obra, no entanto, também pode ser lida como uma paródia
do gênero policial, já que os crimes são pano de fundo para elaboradas críticas
sociais. Em certo ponto, Fonseca era um niilista na visão de uma sociedade como
opressora do indivíduo: o que ele narrava era o cotidiano violento das grandes
cidades e os dramas humanos que ele desencadeia.
Seus bandidos são amorais, aversos a qualquer sentimento de
culpa, sejam ricos ou pobres. Fonseca dominava com maestria o jogo entre os
arquétipos de bandido e mocinho, mas sem cair nos lugares comuns. Com
frequência, é difícil saber quem em um ou outro em seus textos. Um exemplo é A
grande arte, em que, tanto o leitor quanto um dos personagens, Wexler, chegam a
desconfiar que o grande criminoso da história seja o mocinho Mandrake. “Pode
ter sido qualquer pessoa. Pode ter sido você, Mandrake”, diz ele na página 296.
O domínio das muitas nuances da alma humana permitiu-lhe
escrever com a mesma verossimilhança sobre halterofilistas e executivos,
marginais e financistas, delegados de polícia e assassinos profissionais,
garotas de programa e pobres diabos que vagam sem destino pelas ruas do Rio de
Janeiro. Se os extremos da sociedade não lhe intimidavam, muito menos o faziam
as palavras. “Eu escrevi 30 livros. Todos cheios de palavras obscenas. Nós,
escritores, não podemos discriminar as palavras. Não tem sentido um escritor
dizer: ‘Eu não posso usar isso’. A não ser que você escreva um livro infantil.
Toda palavra tem que ser usada”, disse ele em 2015 ao receber o Prêmio Machado
de Assis, entregue pela Academia Brasileira de Letras (ABL). Quase sempre
recluso, foi um dos poucos eventos públicos aos que consentiu sua presença
—outro foi em 2003, quando recebeu das mãos de Gabriel García Márquez em
Guadalajara, no México, o prestigioso Prêmio Juan Rulfo.
Para Antonio Sáez Delgado, crítico literário de EL PAÍS,
Fonseca foi um “mestre em examinar os labirintos da violência psicológica”
através de seus personagens que vivem nos limites do mundo e de si mesmos. “Seu
universo é, portanto, social e obsessivo, perturbador, com um estilo direto e
penetrante, perfeitamente administrado na arte de, ao mesmo tempo, dizer e se
esconder”.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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