Imagem postada por MD, a fim de ilustrar o presente artigo.
Foto reproduzida do site: recantodasletras.com.br
Memória de Livros.
Por João Ubaldo.
Aracaju, a cidade onde nós morávamos no fim da década de 40,
começo da de 50, era a orgulhosa capital de Sergipe, o menor Estado brasileiro
(mais ou menos do tamanho da Suíça). Essa distinção, contudo, não lhe tirava o
caráter de cidade pequena, provinciana e calma, à boca de um rio e a pouca
distância de praias muito bonitas. Sabíamos do mundo pelo rádio, pelos
cinejornais que acompanhavam todos os filmes e pelas revistas nacionais. A
televisão era tida por muitos como mentira de viajantes, só alguns loucos
andavam de avião, comprávamos galinhas vivas e verduras trazidas à nossa porta
nas costas de mulas, tínhamos grandes quintais e jardins, meninos não discutiam
com adultos, mulheres não usavam calças compridas nem dirigiam automóveis e
vivívamos tão longe de tudo que se dizia que, quando o mundo acabasse, só íamos
saber uns cinco dias depois.
Mas vivíamos bem. Morávamos sempre em casarões enormes, de
grandes portas, varandas e tetos altíssimos, e meu pai, que sempre gostou das
últimas novidades tecnológicas, trazia para casa tudo quanto era tipo de
geringonça moderna que aparecia. Fomos a primeira família da vizinhança a ter
uma geladeira e recebemos visitas para examinar o impressionante armário branco
que esfriava tudo. Quando surgiram os primeiros discos long play, já tínhamos a
vitrola apropriada e meu pai comprava montanhas de gravações dos clássicos, que
ele próprio se recusava a ouvir, mas nos obrigava a escutar e comentar.
Nada, porém, era como os livros. Toda a família sempre foi
obsedada por livros e às vezes ainda arma brigas ferozes por causa de livros,
entre acusações mútuas de furto ou apropriação indébita. Meu avô furtava livros
de meu pai, meu pai furtava livros de meu avô, eu furtava livros de meu pai e
minha irmã até hoje furta livros de todos nós. A maior casa onde moramos, mais
ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala reservada para
a biblioteca e gabinete de meu pai, mas os livros não cabiam nela - na verdade,
mal cabiam na casa. E, embora os interesses básicos dele fossem Direito e
História, os livros eram sobre todos os assuntos e de todos os tipos. Até mesmo
ciências ocultas, assunto que fascinava meu pai e fazia com que ele às vezes se
trancasse na companhia de uns desenhos esotéricos, para depois sair e dirigir
olhares magnéticos aos circunstantes, só que ninguém ligava e ele desistia
temporariamente. Havia uns livros sobre hipnotismo e, depois de ler um deles,
hipnotizei um peru que nos tinha sido dado para um Natal e, que, como jamais
ninguém lembrou de assá-lo, passou a residir no quintal e, não sei por queê,
era conhecido como Lúcio. Minha mãe se impressionou, porque, assim que comecei
meus passes hipnóticos, Lúcio estacou, pareceu engolir em seco e ficou
paralisado, mas meu pai - talvez porque ele próprio nunca tenha conseguido
hipnotizar nada, apesar de inúmeras tentativas - declarou que aquilo não tinha
nada com hipnotismo, era porque Lúcio era na verdade uma perua e tinha pensado
que eu era o peru.
Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os
livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa
toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles
todas as horas do dia, a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no
colo, fingindo que estava lendo e, na verdade, se não me trai a vã memória, de
certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que
elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia
nelas o que inventara. Segundo a crônica familiar, meu pai interpretava aquilo
como uma grande sede de saber cruelmente insatisfeita e queria que eu
aprendesse a ler já aos quatro anos, sendo demovido a muito custo, por uma
pedagoga amiga nossa. Mas, depois que completei seis anos, ele não agüentou,
fez um discurso dizendo que eu já conhecia todas as letras e agora era só uma
questão de juntá-las e, além de tudo, ele não suportava mais ter um filho
analfabeto. Em seguida, mandou que eu vestisse uma roupa de sair, foi comigo a
uma livraria, comprou uma cartilha, uma tabuada e um caderno e me levou à casa
de D. Gilete.
- D. Gilete - disse ele, apresentando-me a senhora de
cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo -, este rapaz já está um
homem e ainda não sabe ler. Aplique as regras.
"Aplicar as regras", soube eu muito depois com um
susto retardado, significava, entre outras coisas, usar a palmatória para
vencer qualquer manifestação de falta de empenho ou burrice por parte do aluno.
Felizmente D. Gilete nunca precisou me aplicar as regras, mesmo porque eu de
fato já conhecia a maior parte das letras e juntá-las me pareceu facílimo, de
maneira que, quando voltei para casa nesse mesmo dia, já estava começando a
poder ler. Fui a uma das estantes do corredor para selecionar um daqueles livrões
com retratos de homens carrancudos e cenas de batalhas, mas meu pai apareceu
subitamente à porta do gabinete, carregando uma pilha de mais de vinte livros
infantis.
- Esses daí agora não - disse ele. - Primeiro estes, para
treinar. Estas livrarias daqui são uma porcaria, só achei estes. Mas já
encomendei mais, esses daí devem durar uns dias.
Duraram bem pouco, sim, porque de repente o mundo mudou e
aquelas paredes cobertas de livros começaram a se tornar vivas, freqüentadas
por um número estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes
de me transportar a todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida
possíveis. Um pouco febril às vezes, chegava a ler dois ou três livros num só
dia, sem querer dormir e sem querer comer porque não me deixavam ler à mesa -
e, pela primeira vez em muitas, minha mãe disse a meu pai que eu estava maluco,
preocupação que até hoje volta e meia ela manifesta.
- Seu filho está doido - disse ela, de noite, na varanda,
sem saber que eu estava escutando. - Ele não larga os livros. Hoje ele estava
abrindo os livros daquela estante que vai cair para cheirar.
- Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os
livros daquela estante. São livros velhos, alguns têm um cheiro ótimo.
- Ontem ele passou a tarde inteira lendo um dicionário.
- Normalíssimo. Eu também leio dicionários, distrai muito.
Que dicionário ele estava lendo?
- O Lello.
- Ah, isso é que não pode. Ele tem que ler o Laudelino
Freire, que é muito melhor. Eu vou ter uma conversa com esse rapaz, ele não
entende nada de dicionários. Ele está cheirando os livros certos, mas lendo o
dicionário errado, precisa de orientação.
Sim, tínhamos muitas conversas sobre livros. Durante toda a
minha infância, havia dois tipos básicos de leitura lá em casa: a compulsória e
a livre, esta última dividida em dois subtipos - a livre propriamente dita e a
incerta. A compulsória variava conforme a disposição de meu pai. Havia a
leitura em voz alta de poemas, trechos de peças de teatro e discursos
clássicos, em que nossa dicção e entonação eram invariavelmente descritas como
o pior desgosto que ele tinha na vida. Líamos Homero, Camões, Horácio, Jorge de
Lima, Sófocles, Shakespeare, Euclides da Cunha, dezenas de outros. Muitas vezes
não entendíamos nada do que líamos, mas gostávamos daquelas palavras sonoras,
daqueles conflitos estranhos entre gente de nomes exóticos, e da expressão
comovida de minha mãe, com pena de Antígona e torcendo por Heitor na Ilíada.
Depois de cada leitura, meu pai fazia sua palestra de rotina sobre nossa
ignorância e, andando para cima e para baixo de pijama na varanda, dava uma
aula grandiloqüente sobre o assunto da leitura, ou sobre o autor do texto, aula
esta a que os vizinhos muitas vezes vinham assistir. Também tínhamos os resumos
- escritos ou orais - das leituras, as cópias (começadas quando ele, com grande
escândalo, descobriu que eu não entendia direito o ponto-e-vírgula e me obrigou
a copiar sermões do Padre Antônio Vieira, para aprender a usar o
ponto-e-vírgula) e os trechos a decorar. No que certamente é um mistério para
os psicanalistas, até hoje não só os sermões de Vieira como muitos desses
autores forçados pela goela abaixo estão entre minhas leituras favoritas. (Em
compensação, continuo ruim de ponto-e-vírgula).
Mas o bom mesmo era a leitura livre, inclusive porque
oferecia seus perigos. Meu pai usava uma técnica maquiavélica para me convencer
a me interessar por certas leituras. A circulação entre os livros permanecia
absolutamente livre, mas, de vez em quando, ele brandia um volume no ar e
anunciava com veemência:
- Este não pode! Este está proibido! Arranco as orelhas do
primeiro que chegar perto deste daqui!
O problema era que não só ele deixava o livro proibido bem à
vista, no mesmo lugar de onde o tirara subitamente, como às vezes a proibição
era para valer. A incerteza era inevitável e então tínhamos momentos de
suspense arrasador (meu pai nunca arrancou as orelhas de ninguém, mas todo
mundo achava que, se fosse por uma questão de princípios, ele arrancaria), nos
quais lemos Nossa vida sexual do Dr. Fritz Kahn, Romeu e Julieta; O Livro de
San Michele, Crônica Escandalosa dos Doze Césares, Salambô, O Crime do Padre
Amaro - enfim, dezenas de títulos de uma coleção estapafúrdia, cujo único ponto
em comum era o medo de passarmos o resto da vida sem orelhas - e hoje penso que
li tudo o que ele queria disfarçadamente que eu lesse, embora à custa de
sobressaltos e suores frios.
Na área proibida, não pode deixar de ser feita uma menção
aos pais de meu pai, meus avós João e Amália. João era português, leitor
anticlerical de Guerra Junqueiro e não levava o filho muito a sério
intelectualmente, porque os livros que meu pai escrevia eram finos e não
ficavam em pé sozinhos. "Isto é uma merda", dizia ele, sopesando com
desdém uma das monografias jurídicas de meu pai. "Estas tripinhas que não
se sustentam em pé não são livros, são uns folhetos". Já minha avó tinha
mais respeito pela produção de meu pai, mas achava que, de tanto estudar altas
ciências, ele havia ficado um pouco abobalhado, não entendia nada da vida. Isto
foi muito bom para a expansão dos meus horizontes culturais, porque ela não só
lia como deixava que eu lesse tudo o que ele não deixava, inclusive revistas
policiais oficialmente proibidas para menores. Nas férias escolares, ela ia me
buscar para que eu as passasse com ela, e meu pai ficava preocupado.
- D. Amália - dizia ele, tratando-a com cerimônia na
esperança de que ela se imbuísse da necessidade de atendê-lo -, o menino vai
com a senhora, mas sob uma condição. A senhora não vai deixar que ele fique o
dia inteiro deitado , cercado de bolachinhas e docinhos e lendo essas coisas
que a senhora lê.
- Senhor doutor - respondia minha avó -, sou avó deste
menino e tua mãe. Se te criei mal, Deus me perdoe, foi a inexperiência da
juventude. Mas este cá ainda pode ser salvo e não vou deixar que tuas
maluquices o infelicitem. Levo o menino sem condição nenhuma e, se insistes,
digo-te muito bem o que podes fazer com tuas condições e vê lá se não me
respondes, que hoje acordei com a ciática e não vejo a hora de deitar a
sombrinha ao lombo de um que se atreva a chatear-me. Passar bem, Senhor doutor.
E assim eu ia para a casa de minha avó Amália, onde ela
comentava mais uma vez com meu avô como o filho estudara demais e ficara
abastalhado para a vida, e meu avô, que queria que ela saísse para poder beber
em paz a cerveja que o médico proibira, tirava um bolo de dinheiro do bolso e
nos mandava comprar umas coisitas de ler - Amália tinha razão, se o menino
queria ler que lesse, não havia mal nas leituras, havia em certos leitores. E
então saíamos gloriosamente, minha avó e eu, para a maior banca de revistas da
cidade, que ficava num parque perto da casa dela e cujo dono já estava
acostumado àquela dupla excêntrica. Nós íamos chegando e ele perguntava:
- Uma de cada?
- Uma de cada - confirmava minha avó, passando a
superintender, com os olhos brilhando, a colheita de um exemplar de cada
revista, proibida ou não-proibida, que ia formar uma montanha colorida
deslumbrante, num carrinho de mão que talvez o homem tivesse comprado para
atender a fregueses como nós. - Mande levar. E agora aos livros!
Depois da banca, naturalmente, vinham os livros. Ela
acompanhava certas coleções, histórias de "Raffles, Arsène Lupin",
Ponson du Terrail, Sir Walter Scott, Edgar Wallace, Michel Zevaco, Emilio
Salgari, os Dumas e mais uma porção de outros, em edições de sobrecapas extravagantemente
coloridas que me deixavam quase sem fôlego. Na livraria, ela não só se servia
dos últimos lançamentos de seus favoritos, como se dirigia imperiosamente à
seção de literatura para jovens e escolhia livros para mim, geralmente sem
ouvir minha opinião - e foi assim que li Karl May, Edgar Rice Burroughs, Robert
Louis Stevenson, Swift e tantos mais, num sofá enorme, soterrado por revistas,
livros e latas de docinhos e bolachinhas, sem querer fazer mais nada,
absolutamente nada, neste mundo encantado. De vez em quando, minha avó e eu
mantínhamos tertúlias literárias na sala, comentando nossos vilões favoritos e
nosso herói predileto, o Conde de Monte Cristo - Edmond Dantès! - como dizia
ela, fremindo num gesto dramático. E meu avô, bebendo a cerveja escondido lá
dentro, dizia "ai, ai, esses dois se acham letrados, mas nunca leram o
Guerra Junqueiro".
De volta à casa de meus pais, depois das férias, o problema
das leituras compulsórias às vezes se agravava, porque meu pai, na certeza
(embora nunca desse ousadia de me perguntar), de que minha avó me tinha dado
para ler tudo o que ele proibia, entrava numa programação delirante, destinada
a limpar os efeitos deletérios das revistas policiais. Sei que parece mentira e
não me aborreço com quem não acreditar (quem conheceu meu pai acredita), mas a
verdade é que, aos doze anos, eu já tinha lido, com efeitos às vezes
surpreendentes, a maior parte da obra traduzida de Shakespeare, O elogio da
loucura, As décadas de Tito Lívio, D. Quixote (uma das ilustrações de Gustave Doré,
mostrando monstros e personagens saindo dos livros de cavalaria do fidalgo me
fez mal, porque eu pasei a ver as mesmas coisas saindo dos livros da casa),
adaptações especiais do Fausto e da Divina Comédia, a Ilíada, a Odisséia,
vários ensaios de Montaigne, Poe, Alexandre Herculano, José de Alencar, Machado
de Assis, Monteiro Lobato, Dickens, Dostoievski, Suetônio, os Exercícios
espirituais de Santo Inácio de Loyola e mais não sei quantos outros clássicos,
muitos deles resumidos, discutidos ou simplesmente lembrados em conversas
inflamadas, dos quais nunca me esqueço e a maior parte dos quais faz parte
íntima de minha vida.
Fico pensando nisso e me pergunto: não estou imaginando
coisas, tudo isso poderia ter realmente acontecido? Acho que sim, também joguei
bola, tomei banho nu no rio, subi em árvores e acreditei em Papai Noel. Os
livros eram uma brincadeira como outra qualquer, embora certamente a melhor de
todas. Quando tenho saudades da infância, as saudades são daquele universo que
nunca volta, dos meus olhos de criança vendo tanto que entonteciam, dos cheiros
dos livros velhos, da navegação infinita pela palavra, de meu pai, de meus
avós, do velho casarão mágico de Aracaju.
Texto reproduzido do site: casadobruxo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário