Publicado originalmente no site Interblogs, em 25 de
Dezembro de 2016.
Os Corumbas, personagens de três autores.
Por Homero Fonseca.
A família Corumba é composta dessa espécie muito singular de
personagens literários que saltam do livro original para morar em textos de
outros autores, como citação ou homenagem.
O romance Os Corumbas, de Amando Fontes[1], foi lançado em
1933, mesmo ano de Cacau, de Jorge Amado. Foram a sensação editorial do ano,
esgotando edições rapidamente e merecendo enorme atenção da crítica. No país
extremamente polarizado de então, as duas obras foram o foco de um retumbante
debate sobre literatura proletária, provocado pelo escritor baiano. É que, na
célebre nota introdutória de Cacau, o jovem autor, já então filiado ao Partido
Comunista, se coloca como fundador de uma nova vertente, ideológica, da
literatura brasileira, disparando: "Tentei contar neste livro, com um
mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores
das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?” A resposta,
com aplausos à esquerda e críticas à direita, foi sim.
Mas vem Amando Fontes, católico, político conservador moderado,
e lança, quase simultaneamente a Cacau, a história da família de agricultores
pobres do interior sergipano que, tangida pela seca, vai tentar a sobrevivência
na capital, Aracaju, no início do século 20. O pai, Geraldo, e os filhos
Rosenda, Albertina, Pedro e Bela tornam-se operários; a mãe, Sá Josefa, cuida
da casa, e Caçulinha é mandada para a escola pública, para se formar
professora, melhorar de condição e ajudar a família. O romance é a narração da
degradação econômica, moral e física da família proletária, vitimada por uma
engrenagem gigantesca que tritura os corpos e as almas de trabalhadores
ferozmente explorados. Todo o drama é uma sucessão de desgraças: três filhas
terminam jogadas na prostituição, uma morre tuberculosa, o filho se envolve em agitação
sindical, é preso e deportado, e os dois velhos, na última cena do romance, uma
das mais tristes da literatura brasileira, estão num trem, derrotados,
humilhados e ofendidos, na viagem de volta à terra de onde migraram. Tudo sem
adjetivos, sem pieguice, sem idealização, sem proselitismo. Uma narrativa
essencialista, onde o narrador não toma partido, não intervém, não dá “avisos
ao leitor”.
(Um exemplo emblemático da preocupação de Fontes com a
postura essencialmente narrativa, é trazido pelo crítico e historiador
literário Luís Bueno: descrevendo a cena em que, numa manhã chuvosa e fria, Sá
Josefa deixa-se ficar um pouco mais na cama de tábuas, encolhida, o autor
acrescenta “debaixo da sua miserável coberta de retalhos”. Numa revisão
posterior, o adjetivo miserável seria substituído por desbotada.)[2]
O livro fez um sucesso retumbante, teve três edições num
semestre e venceu o Prêmio Felipe D’Oliveira de Literatura daquele ano. Mas foi
engolfado pelo debate um tanto bizantino, atiçado pela provocação de Jorge
Amado: seria um romance proletário ou sobre proletários? No auge do sectarismo
stalinista e, talvez, cioso de marcar como seu o território, Jorge – que
deixara a interrogação estratégica no caso de Cacau – nesse caso responde com
um rotundo não. E explica, lançando uma espécie de cartilha programática: “A
literatura proletária é uma literatura de luta e revolta. E de movimento de
massa. Sem herói nem heróis de primeiro plano. Sem enredo e sem senso de
imoralidade. Fixando vidas miseráveis sem piedade, mas com revolta. (...) Ora,
acontece que Os Corumbas é o romance de uma família e não o romance de uma
fábrica. (...) O romance proletário deve inspirar o sentimento de revolta e de
luta. Fazer do leitor um inimigo da outra classe. Comover não basta. É Preciso
revoltar.”[3] Saliente-se que, apesar de negar o rótulo de romance proletário a
Os Corumbas, Jorge Amado em linhas gerais elogia a obra.
Todo mundo elogiou, de João Ribeiro, que o considerou “um
romance comunista” a Otávio de Faria, para quem Fontes pinta um quadro
amplamente desfavorável à burguesia, porém imparcial. Alcântara Machado
acolheu-a entusiasticamente. Alguns escritores fizeram algumas ressalvas.
Estranharam o estilo enxuto, “sem poesia”, como escreveu José Lins do Rego.
Houve até quem sentisse falta de palavrões, como o escritor Dias da Costa,
salientando a ausência no texto da “linguagem um tanto escabrosa dos
miseráveis” (certamente usando como parâmetro Cacau). (Ora, Os Corumbas é um
romance de mulheres: são elas, as operárias, as filhas de seu Geraldo, as
protagonistas; submetidas, além da exploração fabril, ao severo poder
patriarcal e à repressão moralista da igreja católica, aquelas mulheres do
início do século 20 não falavam palavrão.) Quem compreendeu perfeitamente a
questão estilística — adequação linguagem-conteúdo e proposta estética — foi
Manuel Bandeira, já no primeiro momento, quando enaltece o estilo direto e sem firulas
de A.F., ao seu ver um escritor “só atento ao que é essencial no romance, ao
movimento do romance, às suas exigências de construção e de verossimilhança
psicológica”.[4][4]
Embora um tanto esquecido nos últimos anos, o belo romance
de A.F. permanece no coração dos leitores (em 2003 foi lançada, pelo José
Olympio, sua 25ª edição) e recebe certa atenção da academia, em dissertações e
teses várias. E mereceu duas homenagens de outros escritores, que incluíram
como personagens em suas obras ficcionais membros ou descendentes da sofrida
família Corumba. Esse fato eleva, ao meu ver, a obra de Amando Fontes à
categoria dos clássicos, que é quando nós passamos a encarar e a citar os fatos
e pessoas narrados como se fossem reais.
MUDANÇA DE DOMICÍLIO LITERÁRIO.
Curiosamente, partiu do próprio Jorge Amado, tão zeloso do
título de romance proletário, a primeira citação de uma criatura de Amando
Fontes em obra alheia. E foi apenas dois anos após o lançamento de Os Corumbas,
no seu romance Jubiabá, de 1935.
Nos dois terços iniciais, o protagonista, o negro Antonio
Balduíno, exerce suas atribuições de boxeador, artista de circo, malandro,
perseguido da polícia e amante vigoroso. É a parte mais bem realizada do
romance, onde predominam a sensualidade, o colorido, os sons e cheiros da Bahia
e do seu povo, características que se tornariam a marca do escritor e seria
aprofundada e alargada após seu rompimento com o Partido Comunista. Na seção
final desse consagrado romance, como um Deus ex machina, Balduíno se torna um dos
líderes das massas operárias nas batalhas campais entre capital e trabalho na
ensolarada cidade do Salvador. É quando, para surpresa do leitor que já tenha
lido o livro de A.F., entra em cena, numa assembleia sindical, um novo
personagem:
Um rapaz pede a palavra. Começaram a bater palmas mal ele
aparece na mesa.
– Quem é? – pergunta Antonio Balduíno ao negro Henrique.
– É um operário das oficinas. Se chama Pedro Corumba. Um
homem escreveu o ABC da família dele que passou o diabo em Sergipe. Eu já li...
Ele é um lutador velho. Grevista velho. Já fez greve em Sergipe, no Rio, em São
Paulo. Eu conheço ele. Depois lhe apresento.
E Pedro Corumba faz um discurso candente, desmascara o
advogado conciliador, incendeia a plateia.
No romance de Amando Fontes, Pedro, jovem operário, é
catequizado por um colega mais velho, José Afonso, lê livros que ele lhe passa,
participa de uma greve, torna-se um destacado ativista sindical, é preso e
deportado para o Rio de Janeiro – em mais um dissabor para os seus que, além do
impacto afetivo, sofrem também com a diminuição da renda familiar. Os fatos se
dão no primeiro terço da obra e Pedro somente reaparece, já para o final, numa
carta aos pais e irmãs enviada do Rio, onde depois de libertado conseguira
emprego, vivia em situação precária e continuava participando dos movimentos
operários, sem maiores detalhes.
Jorge Amado vai buscá-lo já calejado nas lutas proletárias,
para participar e dar uma força na greve dos trabalhadores baianos.
“Continuando” a trajetória do personagem, apenas insinuada no romance original.
Uma bela homenagem do escritor comunista ao colega católico, inclusive citado
indiretamente, pois o “ABC da família dele”, como explica Henrique a Balduíno,
se trata exatamente de Os Corumbas, sabendo-se que na literatura de cordel ABC
é uma das modalidades dos folhetos ou romances de feira.
A segunda “mudança de domicílio” de um personagem vai
ocorrer 63 anos depois e, com o decorrer do tempo, envolverá “descendentes” da
família original. Será no último romance do escritor Herberto Sales, A
prostituta, de 1996. A protagonista chama-se Maria Corumba e, como a Caçulinha
de Amando Fontes, é sergipana, operária, deflorada pelo próprio noivo,
igualmente um militar e, por isso, jogada “na vida”.
O romance de Herberto tem um tom e um desfecho completamente
diferentes do outro, centrando-se na heroína que, ao contrário de suas
“parentas” – e apesar da queda – vai parar no bordel por decisão própria e
termina redimida por um casamento meio inverossímil.
Conforme Manuela Cunha de Souza, em trabalho acadêmico, “a
família retratada em A prostituta, ou o que restou dela, é uma mescla de
elementos que Herberto buscou no romance de Fontes e o que ele imaginou que
poderia acontecer com os integrantes daquela família. De certo modo, a criação
de A prostituta é a continuação da leitura do romance de Amando Fontes pelo
autor. Ele resume quem era aquela família na voz de um dos operários que
conversavam no início da obra, afirmando que seus primeiros integrantes
trabalharam naquela fábrica e que todas as moças acabaram ‘se perdendo’ e
entrando na prostituição. A protagonista vinha a ser ‘prima longe’ dessas
jovens que foram dispensadas do ambiente fabril e partiram para os bordéis...”
Herberto explicaria assim sua motivação: “Na impressão sensível
que me deixou no espírito essa família [Corumba], criei a fantasia romanesca
dela, a jovem sergipana que se tornou a heroína deste meu último romance.” [5]
E assim as criaturas de Amando Fontes sobreviveram e
abrigaram-se em obras de Jorge Amado e Herberto Sales.
Vale a pena, pois, ler essa obra-prima do romance social
brasileiro. Melhor dizendo, obra-prima do romance brasileiro.
[1] Amando Fontes (1899-1967), de família sergipana, nasceu
em Santos e voltou ainda criança para Sergipe. Além de Os Corumbas, publicou
Rua do Siriri, em 1937. Deixou inacabado o romance O Deputado Santos Lima, no
qual eram retratados os últimos anos da República Velha e o começo do novo
regime.
[2] BUENO, Luís - Uma história do romance de 30 – São Paulo:
Edusp, 2006.
[3]AMADO, Jorge. "P.S.".ln: Boletim de Ariel. Rio
de Janeiro, (li, li) 1933. APUD Bueno, obra citada.
[4] APUD BUENO, na obra citada, acrescentando: “A
compreensão de Manuel Bandeira é perfeita”.
[5] SOUZA, Manuela Cunha de. “Entre tantas Marias: nuances
da identidade feminina no romance A prostituta, de Herberto Sales”. Dissertação
para o Programa de pós-graduação em Estudo de Linguagens, UFBA, 2011.
http://www.ppgel.uneb.br/…/uploads/2011/09/souza_manuela.pdf
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