Legenda da foto: Quando a leitora é jovem, os livros servem para assustar os namorados
Publicação compartilhada do site TÍPICO LOCAL, de 6 de junho de 2023
Alguns usos do livro
Quem tem TOC pode usar uma quantidade boa de livros para se distrair catalogando, colecionando, descobrindo formas de organizar o acervo
Por Clotilde Tavares
Usos do livro? Como assim, pergunta você, meu razoável e esclarecido leitor. Livro é uma coisa que tem somente um uso, e que se resume à leitura do seu conteúdo. Você entende a importância da leitura, sabe que o livro é um veículo adequado à transmissão e à propagação do conhecimento; que é um objeto que tem muitas características, quanto a tamanho, aparência, número de páginas, e aos diferentes conteúdos, mas uso mesmo você não consegue imaginar outra coisa para fazer com o livro a não ser lê-lo, ou ignorá-lo, se for o caso em que o conteúdo não lhe desperte interesse. Nesse caso, coloca-se o livro em algum lugar e esquece-se dele.
Agora em abril contei os livros que tenho em casa. São cerca de 2.300, de todo tipo e gênero, e alguns eu tenho desde a minha mais antiga infância. Já tive mais, já tive mais de três mil, mas sempre estou doando. Pois bem: eu, que tenho livros em casa, vou lhe contar alguns usos deste objeto que você nem imagina, e que não têm nada a ver com o ato da leitura.
Quem tem TOC, mesmo na sua forma moderada, pode usar uma quantidade boa de livros para se distrair catalogando, colecionando, descobrindo formas de organizar o acervo. Organizar uma coleção de dois mil e tantos livros: supremo prazer. Isso requer toda uma operação prévia de planejamento, porque os métodos consagrados pela biblioteconomia jamais servem para os nossos próprios livros. A nossa forma não só é a melhor, como a mais funcional e produtiva, e a gente simplesmente não entende porque não é adotada ainda pelas grandes bibliotecas do país. E assim, começamos geralmente pelos critérios que iremos adotar para arrumá-los, como autor, estilo, ou gênero, clássicos ou contemporâneos, ensaio, poesia ou ficção, deixando juntos todos os de Cascudo, os de Borges, os de Suassuna, os de teatro – e agora, como fazer? O Auto da Compadecida fica junto com os de teatro ou com os de Suassuna? Devo comprar um segundo exemplar, para que nenhuma das categorias fique inferior à outra? E mergulhada nessas questões vejo passar a tarde, ou a noite, e a diversão é garantida.
Outro uso do livro é ocupar as mãos enquanto a cabeça precisa resolver um problema. Nesses casos, é preciso colocar uma mesinha auxiliar junto da estante, e ir tirando os livros da prateleira, com lentidão e carinho, um a um, folheando, revendo dedicatórias, procurando grifos antigos ou papeizinhos entre suas páginas, ou simplesmente tendo-os entre as mãos, distraída, como se alisasse o dorso de um gato ou brincasse com as orelhas de um cachorro. Os livros vão se amontoando sobre a mesa, a prateleira fica nua, pronta para o pano que vai tirar aquela poeira – e nada de pano úmido porque umidade não combina com livro. A cabeça, cercada pela afetuosa presença e manuseio dos livros queridos, fica relaxada, confortável, tranquila e de repente, voilá! Aparece a solução perfeita para aquilo que estava exigindo uma decisão, uma resposta, um encaminhamento.
Quando a leitora é jovem, os livros servem para assustar os namorados. Eu nunca compreendi porque aquelas criaturas cujos cérebros louros e bronzeados que só entendiam de marés e pranchas achavam que tinham que ler para poder namorar uma leitora. Entravam na minha casa e diziam: Mermão, vou ter que ler isso tudo? Era o comentário dos filhos de Poseidon, semideuses das ondas e dos ventos, ao se depararem com aquelas paredes cobertas de livros. Eu perguntava: Rapaz, eu vou ter que me equilibrar numa prancha e surfar? Claro que não, diziam. Aí eu encerrava: Então você não precisa ler tudo isso. Bora ali, bora conversar um assunto – e a gente ia brincar de Eduardo e Mônica.
Um dos meus usos preferidos para o livro é quando acordo de manhã e abro a porta do quarto para o resto do apartamento, cheio de livros, que passaram a noite ali, fechados, exalando e concentrando seu maravilhoso cheiro de madeira adocicada. Eu inspiro e encho o pulmão com o melhor perfume do mundo, odor de árvores antigas, de mel, de sementes doces, olhando aquelas lombadas amadas, berço de histórias lidas, relidas ou ainda não lidas, mas que já estão comigo, e que me cercam de doses de carinho e afeto cuja intensidade os humanos desconhecem.
Mas o melhor momento é quando paro a leitura porque um trecho me emocionou ou me fez refletir, e coloco o livro aberto sobre o peito, sincronizando meu coração com o dele. Desce sobre mim a calma dos abençoados, cerro devagar os olhos, e tenho a certeza de que, enquanto o mundo ferve lá fora, eles sempre estarão ali comigo e nunca, nunca, nunca irão embora, nunca me deixarão sozinha.
Texto e imagem reproduzidos do site: tipicolocal com br
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