Publicação compartilhada do blog TODO PROSA, de 1 de junho de 2023
Ler é viver muitas vidas sem precisar reencarnar
Por Ricardo Soares*
Jovem comprei muitos livros para o velho que hoje sou ler. Comprei tantos e tão compulsivamente, talvez iludido que ao comprá-los poderia ler todos. Fora os muitos livros que ganhei por deveres, prazeres e ofícios da profissão.
Agora olho para todos esses livros e rio complacente comigo mesmo. A ilusão de ler tanto como se não fosse preciso viver célere e urgentemente. Isso provoca, por exemplo que um livro curto e desejado, comprado em 2 de agosto de 1985 só tenha a leitura concluída em 18 de maio de 2023. Um exemplo entre muitos. Quase 38 anos entre o gesto de comprar e a leitura consumada. Nesse interim o tal livro virou filme, sua autora morreu e eu visitei seu túmulo em Paris entre a compra do livro e a conclusão da leitura.
Um dos fascínios do livro é isso. Sua aguda, ardente e longa paciência. Volumes eretos na estante que, às vezes, ficam 78 anos para serem lidos como ocorreu outro dia com um volume de contos de Eça de Queiroz,como está na grafia da edição portuguesa.
Há livros que esperam muito mais e outros, quase que inexplicavelmente, são lidos na sequência , logo após serem comprados quando os tiramos de suas sacolas e com eles deitamos em sofás ou camas.
Esse prazer, esse mistério que envolve livros e leituras pode parecer pueril a quem não é afeito ao assunto. Mas, os que são compreenderão. E , tudo isso, para dizer o que? Que os livros , as palavras impressas, são atemporais e qualquer autor morto , medíocre ou genial, seguirá vivo assim que um leitor deitar os olhos sobre suas palavras, suas vírgulas, travessões, interrogações. Eu mesmo e essa tola crônica seguirá viva mesmoo depois de eu ter morrido no momentoo em que alguém ler tudo isso.
Palavras serão imortais, vale o escrito, sempre, seja em que idioma ou grafia enquanto o planeta não for calcinado e as bibliotecas incineradas. Isso sem falar na destruição definitiva de qualquer biblioteca virtual nesses novos tempos de leituras por métodos que antes só imaginávamos.
O acumulo de livros e leituras é graveto sobre graveto, cordas sobre cordas, uma amarrando a outra a nos sustentarem à beira de abismos ou paraísos , conforme o gosto do leitor. Assim podemos ter certeza, não só Machado e Eça , Camões e Pessoa seguirão vivos mas qualquer Zé Mané autor de memórias próprias e póstumas seguirão vivendo se seus escritos forem lidos post mortem seja por um único ser humano.
Bibliotecas imensas não podem ser lidas numa única vida e embora saibamos disso não abrimos mão do colecionismo literário. Falo por mim mas são muitos os que padecem dessa doce mazela ignorando o preceito de Schopenhauer que pregava que seria muito bom se ao comprar livros também comprássemos tempo para lê-los.
Não faço a menor ideia de quantos kms de livros li na vida se é que essa unidade de medida seja conveniente para auferir leituras. Mas sei mais ou menos o espaço que eles ocupam em minha casa e na minha vida e ao contrário de muitos não consigo me desapegar deles. Antes o contrário pois hoje , sem mulher , filhos criados, cães escovados eu me agarro aos livros como um náufrago ao seu bote , com perdão da obvia e surrada comparação.
Os livros são meu alento, distração, dispersão e loucura e isso bem antes da pandemia que , aliás, só me fez ficar mais abraçado a eles. O mote é antigo e só o repito: não consigo imaginar uma vida sem livros ou sem ler. Que solidão barulhenta deve ser isso ! E desde a infância penso isso o que é curioso pois não venho exatamente de uma família de leitores.
Apavorado fico imaginando o que seria minha vida sem ler. Que tédio rotundo, que despenhadeiro de monotonia e falta do que fazer apesar das louças a serem lavadas, as comidas a serem preparadas, os filmes e séries a serem assistidos. Posso lhes garantir que dá para fazer isso tudo e muito mais e ainda sobra muito tempo para ler. Por isso assumo uma certa arrogância e solto risos de desprezo quando a maioria de não leitores dizem não ler porque não tem tempo. Ora, "vão pentear macacos" como se dizia antigamente e inventem outra desculpa.
Se você é alfabetizado e tem um mínimo de poder aquisitivo não lê é por preguiça mesmo. Quem quer ler sempre arruma tempo para isso. E olha que nem vou aqui tergiversar sobre o sofrível índice de leitura dos brasileiros de todas as idades que associam o hábito a chatice e inação. Mal sabem quanta ação achariam em páginas que não frequentam.
É o hábito que faz o monge portanto se por gerações de famílias ninguém em casa lê será difícil aparecerem novos leitores. E nós, leitores, extintos não estamos, mas parece que não proliferamos até por conta, agora, de tanta concorrência audiovisual e internética.
O venerável Borges dizia que para ele o paraíso devia ser uma grande biblioteca o que se converteria em inferno para não leitores que olhando todos aqueles volumes enfileirados arrancariam os cabelos e as páginas dos livros para fazerem fogueiras . Afinal, o que faz um cego diante da escuridão ?
Meus olhos, cabeça,tronco e membros envelhecem , mas quanto mais eu leio mais eu vejo e quanto mais vejo vivo muitas outras vidas além da minha. Da antiga Indochina até a África nem mais tão profunda , do Jequitinhonha ao Pelourinho , da Foz do Iguaçu à procura, sempre, de um bom novo caminho desculpem a obviedade, mas ler é viver muitas vidas sem precisar reencarnar.
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* Ricardo Soares - Escritor, jornalista, roteirista, diretor de tv
Texto e imagem reproduzidos do blog: todoprosa blogspot com
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