Artigo compartilhado do site CARLOS ROMERO.
Res derelicta
Quem gosta de sebos? E quem gosta de catar livros no lixo?
Por Neide Medeiros Santos.
Conheci um leitor compulsivo que não podia ver livros no lixo, ia logo examinando e às vezes levava para casa relíquias abandonadas. Certo dia encontrou uma Bíblia traduzida pelo português João Ferreira de Almeida no lixo de uma escola católica, fruto talvez de uma biblioteca escolar, e guardou com muito carinho o exemplar descartado. A tradução de João Ferreira de Almeida é considerada um marco da história da Bíblia, foi a primeira tradução do Novo Testamento a partir das línguas originais e o livro estava jogado no lixo. Quanto desperdício!
Quem se lembra do antigo costume de escrever poemas dos poetas preferidos em cadernos? Só gente bem antiga se lembra disso. A professora Ana Lúcia Teixeira de Carvalho, em entrevista concedida à equipe do projeto “Redescobrindo as trilhas de Augusto dos Anjos”, contou que seu pai deu à noiva ( sua mãe) um caderno com poemas de Augusto dos Anjos, tudo escrito à mão.
Pois bem, voltemos ao leitor maníaco por livros. Não faz muito tempo, nosso amigo resgatou entre metralhas de uma construção um caderno de alguma moça sonhadora e romântica com poemas de Augusto dos Anjos,
Raul Machado, Américo Falcão, Anayde Beiriz. Os poetas mortos estavam todos vivos naquele caderno com letra manuscrita, caligrafia de moça caprichosa. O caderninho ia virar papel reciclado.
A historiadora Lúcia Guerra conseguiu reaver uma 1ª edição do livro “A Paraíba e seus problemas”, de José Américo de Almeida. O livro estava em um depósito de lixo da maçonaria Branca Dias, na Avenida General Osório. Só não teve um triste fim porque uma pesquisadora, ciosa do valor de livros antigos, recolheu-o e ofertou à Fundação Casa de José Américo.
Nos arquivos do filósofo Walter Benjamin, foi encontrado o desenho de Angelus Novus, de Paul Klee. Há um detalhe sobre o destino desse trabalho de Klee. Antes de deixar a capital francesa, onde se encontrava refugiado durante a 2ª. Guerra Mundial, Benjamin retirou o desenho da moldura, colocou-o numa mala junto com seus escritos, queria salvá-lo da catástrofe. Coube a Adorno ser depositário dessa preciosidade que hoje se encontra no Museu de Israel. Para chegar a esse museu, um longo caminho foi percorrido. A fúria contra os judeus pelos nazistas não poupava livros nem obras de arte.
Certamente há muitas histórias de resgate de preciosidades literárias e artísticas colhidas em lixo, depósitos abandonados, bibliotecas desativadas, metralhas de construção e nos arquivos pessoais.
Quem quiser saber o significado da expressão latina RES DELERICTA consulte um dicionário de latim ou pergunte ao professor Milton Marques Júnior, versado na língua latina.
O leitor compulsivo, referido no início deste texto, foi aluno do professor Paulo Bezerril na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba e lembrava que este professor gostava de repetir essa expressão em suas aulas de Direito Civil.
Texto e imagem reproduzidos do site: carlosromero com br
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