Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 5 de abril de 2024
“Os livros nos tornam mais humanos”, diz o neurocientista Michel Desmurget.
Um dos maiores críticos da dependência de telas e meios eletrônicos na atualidade tem um antídoto para preservar a inteligência e a saúde mental: ler mais. Entrevista a Diogo Sponchiado, da Veja:
Primeiro, o diagnóstico, depois, o tratamento. Sob essa lógica, o pesquisador francês Michel Desmurget descortina as raízes da queda no desempenho intelectual e o aumento de problemas emocionais entre os mais jovens. Seu exame, baseado em evidências científicas, deu origem ao best-seller internacional cujo título entrega, sem medir palavras, a visão do autor: A Fábrica de Cretinos Digitais. Agora, o neurocientista, que está à frente do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França, oferece o remédio para evitar ou reverter os males causados pela onipresença e dependência de telas, games, redes sociais e companhia: a leitura. Em Faça-os Ler!, publicado pela editora Vestígio, ele reúne uma avalanche de estudos para mostrar que esse hábito — sobretudo quando cultivado por prazer, fora das obrigações escolares — tem sido corroído pela vida virtual, numa troca que faz crianças e adolescentes perderem as vantagens únicas oferecidas por livros e revistas. Em entrevista a VEJA, Desmurget elucida os benefícios mentais e sociais capazes de influenciar os rumos da humanidade.
Em seu novo livro, o senhor denuncia uma redução gradual e perigosa nos níveis de leitura em escala global. Os meios eletrônicos são os culpados? Com certeza. Numerosos estudos confirmam que nos últimos cinquenta anos o tempo de leitura diminuiu drasticamente, e isso está relacionado ao aumento no tempo dedicado às telas. As horas que nossos filhos destinam ao entretenimento digital têm de ser roubadas de algum lugar, de modo que as telas consomem hoje quase todo o período antes reservado à leitura. E, como esperado, à medida que os mais novos leem menos, cai também sua proficiência na leitura. No último meio século, a maioria dos países ocidentais registrou um declínio nas competências linguísticas e no desempenho de leitura entre os jovens.
Mas eles também leem no celular ou no computador, não? As pessoas dizem que as crianças gostam de ler. Só que, no fim das contas, elas não estão lendo. Preferem jogar videogame ou assistir a séries ou desenhos animados. Também nos dizem que nunca leram tanto desde o advento da internet, mas isso não é verdade. O tempo de tela dedicado à leitura não excede 2% a 3% do período total dedicado aos meios eletrônicos, dependendo da idade. Fora que o conteúdo é pobre demais do ponto de vista linguístico para oferecer um efeito benéfico. A maioria dos estudos mostra que o tempo gasto em blogs e redes sociais impacta negativamente as habilidades com o idioma e o desempenho acadêmico.
Desde a publicação de A Fábrica de Cretinos Digitais, em 2019, acredita que a sociedade está mais consciente dos riscos de tanta tela? Sim, uma consciência coletiva está emergindo. A situação atual reflete a trajetória de questões de saúde pública anteriores, como o tabagismo, o uso de pesticidas e o aquecimento global. Inicialmente, há negação. Depois, uma espécie de minimização para retardar a sensibilização da sociedade. Contudo, os fatos não podem ser escondidos sob o verniz do marketing e do lobby. Chegamos a esse ponto em relação às telas. A evidência ultrapassou o domínio das investigações científicas e permeia as observações cotidianas. O excesso de telas está por trás de uma proliferação de problemas relacionados a linguagem, atenção, memória e impulsividade, levando a um declínio na capacidade intelectual de nossos filhos. Os últimos estudos do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) reforçam essa preocupação. Surpreendentemente, as empresas responsáveis pelas redes sociais continuam escalando seus esforços de lobby. A Meta, que controla Facebook e Instagram, nos serve como um ótimo exemplo. Documentos internos recentemente expostos revelam que a companhia sabia dos efeitos nocivos de seus produtos. E 41 estados americanos estão levando o caso aos tribunais sob a acusação de que eles causam “danos significativos à saúde física e mental”.
Se continuarmos a perder leitores nesse ritmo, como vislumbra o futuro da humanidade? É claro que podemos viver e encontrar a felicidade sem ler. No entanto, uma vez que se aceita esse princípio, surge a questão: o que perdemos quando não lemos? A resposta é simples: perdemos uma parte essencial daquilo que nos torna humanos. Não é por acaso que os livros e a linguagem têm sido consistentemente alvos das ditaduras mais implacáveis. Os nazistas queimaram mais de 100 milhões de livros e, como bem demonstra o acadêmico Victor Klemperer, embarcaram em um processo de empobrecimento linguístico semelhante ao descrito por George Orwell em seu romance 1984. Em Minha Luta, Hitler retrata a literatura como um veneno para as pessoas. A melhor ilustração de como seria um mundo sem leitura é, a meu ver, fornecida por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo. Nele, o autor descreve uma massa voluntária de técnicos devotados, moldados para atender às necessidades econômicas, alimentados à força por entretenimento estúpido e contentes com a servidão que mal podem perceber. Em contraste a eles, Huxley descreve uma pequena elite equipada com as ferramentas linguísticas e culturais necessárias ao pensamento. Encontramos a mesma ideia no romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. De um lado, está o bombeiro Montag, cansado de queimar livros, refletindo sobre o mundo e a sociedade. Do outro, sua esposa Mildred, viciada em TV e em drogas psicotrópicas. Ler é o antídoto para Mildred. É o caminho para a emancipação.
Por que o senhor defende de forma veemente a necessidade de estimularmos o hábito de ler em família desde cedo? A leitura não é inata para o ser humano. É um legado transmitido às crianças pelo seu ambiente familiar. Em primeiro lugar, porque é a família que estabelece a identidade de meninos e meninas como leitores ao demonstrar a importância dos livros. Isso envolve ler histórias com frequência para os mais novos, levá-los a bibliotecas, modelar esse comportamento desde cedo. Em segundo lugar, a família equipa a criança com os pré-requisitos para o aprendizado. E, nesse sentido, é crucial entender que a linguagem escrita é mais rica e complexa que a falada. Estudos revelam que há maior riqueza verbal nos álbuns ilustrados pré-escolares do que em qualquer conversa, desenho ou programa de TV infantil. Daí a importância da leitura compartilhada entre pais e filhos. Ela deve começar cedo — entre 3 e 6 meses de vida, segundo pesquisas — e continuar pelo maior tempo possível. Muitos pais deixam de fazer isso quando percebem que os filhos já começam a ler de forma independente. Mas é um erro porque, nesse momento, a criança não está aprendendo a ler de fato, e sim a decodificar o que está escrito. Ler não é só decodificar. Exige compreensão. Quando a atividade é feita em família, ajudamos os mais novos a desenvolver as competências para ler com autonomia, a lidar com textos mais complexos e, portanto, mais enriquecedores, e a preservar a alegria da leitura. Não podemos esquecer que, nesse início, ler exige esforço e o prazer nem sempre é imediato. E, sem prazer, não haverá leitor. Por fim, os estudos mostram que as escolas não conseguem cumprir esse papel tão bem como as famílias. Não quero dizer que os professores sejam incapazes ou não possam ler histórias. Mas eles têm um tempo limitado para essas atividades, geralmente feitas em grupo. Nesse aspecto, a família proporciona um ambiente insubstituível.
Muitos adultos tentam estabelecer ou resgatar o hábito de leitura, mas falham e abandonam a empreitada. Que conselho dar a eles? Perseverem. Reduzam o tempo de uso recreativo das telas, que consomem parte significativa de nossas vidas, e tentem incorporar a leitura no dia a dia. Sugiro, por exemplo, reservar de vinte a trinta minutos à noite, antes ou depois do jantar, o que pode ser feito com as crianças, no modo “Agora estamos lendo”. Porém, é fato que muitas pessoas cresceram sem ler o suficiente, deixando de absorver a linguagem mais complexa e diversa que caracteriza os livros. Esses são casos mais desafiadores, porque exigem que o sujeito se familiarize com os livros. Isso leva tempo! E é melhor começar com livros não tão exigentes, tendo ao lado um dicionário para checar palavras cujo desconhecimento possa dificultar a compreensão. Em suma, começar a ler tarde na vida não é impossível, mas é mais difícil do que quando essa habilidade é desenvolvida gradualmente ao longo do tempo.
Seu livro enfatiza o poder da ficção escrita. Por que contos, novelas e romances são tão especiais para o nosso desenvolvimento e bem-estar psíquico e social? As obras escritas concentram, para começar, uma maior abundância em termos de linguagem e conhecimentos gerais quando as comparamos a filmes, séries, programas de TV… A beleza da leitura é que absorvemos tamanha riqueza até incidentalmente, mesmo sem perceber. Quando se trata de sucesso acadêmico e capacidade intelectual, não há substituto para os livros. Eles têm uma influência positiva e documentada no QI, na criatividade, nas habilidades escritas e orais. Acontece que os livros de ficção também impactam nossas habilidades sociais e emocionais. Nenhum outro meio permite acesso tão direto e profundo aos pensamentos e sentimentos dos personagens. Entramos na cabeça deles e, mais do que isso, podemos vivenciar aquelas emoções. Pesquisas indicam que as mesmas redes cerebrais são ativadas quando essas sensações são experimentadas por meio da leitura ou evocadas por eventos da vida real. São características que promovem a empatia, a capacidade de compreender os outros e a si mesmo. Os livros de ficção nos tornam literalmente mais humanos.
Livros de papel, em áudio, digitais… Os novos formatos se equivalem ao tradicional quando pensamos na captação do conteúdo? Existem inúmeros estudos que compararam o grau de compreensão e memorização de um enunciado apresentado em diferentes meios: papel, eletrônico e áudio. Os resultados revelam duas coisas. Quando o trecho é simples, não há diferença entre eles. Mas, quando ele é complexo, emerge a superioridade do papel. No formato impresso, conseguimos nos concentrar melhor, esclarecer mais facilmente mal-entendidos e, diante daquela unidade espacial, navegar dentro do texto, o que repercute na hora de recordar elementos e fazer uma representação mental do que foi escrito. O cérebro se orienta melhor no livro físico do que numa estrutura virtual. Isso não quer dizer que os outros meios devam ser banidos. É preferível que crianças ouçam audiobooks ou leiam livros digitais do que desperdicem anos decisivos na Netflix, no TikTok ou no videogame. É como escreveu Umberto Eco: “O livro é como a colher, o martelo, a roda ou o cinzel. Depois de inventá-los, você não poderá fazer nada melhor”.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com
Nenhum comentário:
Postar um comentário