sábado, 25 de março de 2017

José Calasans Brandão da Silva

Foto reproduzida do Jornal da Mídia.
Postado por MD, para ilustrar artigo.

Publicado originalmente no site do jornal Folha de S. Paulo, em 10/06/2001.

Em 28 de maio morreu, aos 85 anos, o historiador José Calasans,
o mais importante estudioso de Canudos.

Um sertão não-euclidiano.
Roberto Ventura (especial para a Folha).

Eu gosto muito de conversar." Assim falava de si o historiador sergipano José Calasans, o mais importante conhecedor da história de Canudos ou Belo Monte, a comunidade religiosa criada por Antônio Conselheiro em 1893 no sertão da Bahia. O povoado foi destruído pelas tropas do Exército em 1897, depois de quase um ano de guerra. Canudos foi incorporada à memória do país com o livro de Euclides da Cunha, "Os Sertões", publicado em 1902.

O grande conversador José Calasans Brandão da Silva morreu em 28 de maio, aos 85 anos, em sua residência na Ladeira da Barra, em Salvador. Dotado de prodigiosa memória e vasta erudição, Calasans era consultado pelos interessados em Canudos ou Euclides. Recebia todos com entusiasmo e não escondia dos interlocutores a simpatia que tinha pelo Conselheiro. Chegava a dizer, com humor, que era conselheirista.

Sua paixão por contar e ouvir histórias fez dele a memória viva de Canudos. Tornou-se o elo de ligação entre os pesquisadores mais jovens e os sobreviventes e descendentes de Belo Monte, cujos depoimentos começou a recolher no final da década de 40. Seu último livro, "Cartografia de Canudos", foi publicado em 1997, no centenário do fim da guerra. Sua vontade de compartilhar o que sabia o levou a doar em 1983 toda a documentação que reuniu sobre Canudos à Universidade Federal da Bahia, da qual foi professor de história moderna e contemporânea e vice-reitor. Sua biblioteca contém, entre outras preciosidades, um dos dois cadernos manuscritos, com rezas e pregações, que o Conselheiro deixou como testamento religioso.

Calasans se interessou pela história da comunidade a partir das reportagens que Odorico Tavares fez, com belas fotos de Pierre Verger, para a revista "O Cruzeiro" em 1947, nos 50 anos de sua destruição. Contou ao historiador Marco Villa, em "Calasans, um Depoimento para a História" (1998), que as reportagens lhe revelaram a existência de muitos sobreviventes da guerra e o fizeram dar início à coleta de depoimentos e poemas populares.

Conversou com seguidores do Conselheiro, como Manoel Ciriaco, nascido em Canudos; Honório Vilanova, irmão do mais importante comerciante da região; Francisca Macambira, filha de outro comerciante; Pedrão de Várzea da Ema, um dos chefes armados, depois contratado para combater o bando de Lampião na década de 30. Seu esforço em resgatar a versão dos habitantes do sertão, vencidos na guerra, foi acompanhado por Nertan Macedo, que entrevistou Honório em "Memorial de Vilanova" (1964), e por José Aras, que registrou alguns testemunhos em "Sangue de Irmãos".

Calasans aliou, de forma inovadora, a história oral à pesquisa rigorosa dos manuscritos e documentos. Fez de Canudos não apenas uma história a ser resgatada, mas antes um "mar de histórias", contadas segundo diversas perspectivas. Deu aos relatos orais e populares a mesma importância que atribuía às interpretações impressas ou eruditas. Inspirou-se no destaque dado por Gilberto Freyre à oralidade em "Casa-Grande & Senzala" (1933), ensaio sobre a formação patriarcal da sociedade brasileira.

A história de Belo Monte, tal como contada por Calasans, é diferente daquela apresentada por Euclides da Cunha, que criou, em "Os Sertões", um retrato sombrio do Conselheiro como fanático místico e louco. Segundo Calasans, surgiu a partir dos anos 50 um Canudos "não-euclidiano" com base nos testemunhos dos sobreviventes e na revisão dos documentos sobre a guerra.

Sem julgamentos depreciativos, Calasans recriou a vida de Antônio Vicente Mendes Maciel, filho de um comerciante de Quixeramobim, no interior do Ceará, que se tornou o Conselheiro. Investigou sua formação escolar, o fracasso no comércio e no casamento, a atuação junto ao padre Ibiapina no Ceará. Abordou os escritos de Antônio Maciel, que mostram um sertanejo letrado, capaz de exprimir concepções políticas e religiosas ligadas a um catolicismo tradicional, comum na Igreja do século 19.

Lendas do Conselheiro Em "O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro", sua tese de livre-docência de 1950, Calasans se voltou para os aspectos lendários e fabulosos do guia espiritual do Belo Monte, que a tradição popular identificava a Santo Antônio. Recolheu, em "No Tempo de Antônio Conselheiro" (1959) e em "Canudos na Literatura de Cordel" (Ática, 1984), o cancioneiro sobre Canudos, com algumas versões favoráveis e outras contrárias ao Conselheiro, que ora aparece como enviado de Cristo, encarregado de salvar as almas antes do Juízo Final, ora como bandido cruel, capaz de matar a mãe e a mulher, segundo lenda propagada nos sertões que provocou sua prisão em 1876.

José Calasans se debruçou, em "Quase Biografias de Jagunços" (1986), sobre figuras quase esquecidas do passado e recriou o cotidiano de Canudos a partir das histórias de vida de seus habitantes, vindos de diversas regiões da Bahia, Sergipe e Ceará.

Fez reviver os beatos de Belo Monte, seus negociantes e proprietários, os chefes militares e combatentes, os agricultores, artesãos e professores e até o jaguncinho de Euclides, menino de Canudos, entregue aos cuidados do escritor.

Canudos foi destruída duas vezes, uma pelo fogo, em 1897, outra pela água, em 1968. Com o término da guerra, o povoado foi queimado com tochas de querosene e bombas de dinamite, sendo reduzido a cinzas. Sobre tais escombros ergueu-se outra Canudos, que iria depois submergir sob as águas com a construção do açude de Cocorobó nos anos 60. Nos períodos de seca, suas ruínas ressurgem do imenso lago como fantasmas de um passado já meio distante.

Mas Belo Monte continua viva na obra e na biblioteca do historiador José Calasans Brandão da Silva. Conversador e conselheirista, assinava seus artigos e livros como José Calasans, nome de guerra, com o qual se integrou às tropas do Conselheiro e à história de Canudos.

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Roberto Ventura é professor de teoria literária na Universidade de São Paulo e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras) e "Folha Explica Casa-Grande & Senzala" (Publifolha).

Texto reproduzido do site: folha.uol.com.br

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